quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Sá, 2006a

Referência bibliográfica:

SÁ, C. M. (2006a). Novas tendências na formação de professores de Língua Portuguesa. Til. Fragmentos de Educação, 1, pp. 29-31.

Texto publicado:

1. Entre o fim do século passado e o início deste, o sistema educativo português tem conhecido várias reformas, cujo objectivo central é procurar adaptá-lo às características da sociedade moderna. Em última análise, pretende-se contribuir para a formação de cidadãos adaptados às condições de vida no mundo actual, em constante e rápida mutação.
Assim, a uma primeira reforma, ocorrida na década de 90 do séc. XX, seguiu-se uma segunda reforma, ainda em curso, que marcou o início do séc. XXI e está a alterar substancialmente a vida de todos os que mantêm alguma relação com o contexto educativo.

2. O alarme foi dado por um conjunto de estudos – nacionais e internacionais – que alertaram para um novo problema no domínio da Educação. Podemos referir, a título de exemplo, o estudo de Ana Benavente e sua equipa (BENAVENTE, ROSA, COSTA et al., 1996) e os relatórios relacionados com o PISA – Programme for International Student Assessment, da responsabilidade da OCDE, dentre os quais se destaca o primeiro, consagrado à literacia em leitura (GAVE, 2001).
Todos estes estudos revelaram que a sociedade moderna tem de lutar contra um novo problema: a população de diversas faixas etárias revela graves lacunas em termos de competências essenciais à vida activa. Essas carências manifestam-se em alguns campos bem delimitados: domínio da língua escrita (ou seja, competências ligadas à compreensão na leitura e à produção escrita), do cálculo e de competências mínimas em termos científicos e tecnológicos.
Após o problema da alfabetização (ainda não completamente debelado em Portugal, mas menos gravoso do que em outros momentos da história da nossa sociedade), surge o problema da literacia, que partilhamos com as sociedades mais desenvolvidas do mundo actual e, nomeadamente, com outros países membros da União Europeia.
Colocam-se, assim, novos desafios à Educação. Sente-se a necessidade de converter a passagem dos cidadãos pelo sistema educativo (nos seus diferentes níveis) numa oportunidade de desenvolvimento de competências e não meramente de aquisição de conhecimentos. Só com uma educação desta natureza será possível fazer face às exigências da sociedade moderna, em que os conhecimentos estão em constante alteração.

3. Assim, o poder político português empenhou-se na reforma do sistema educativo nacional e, muito particularmente, do Ensino Básico, de frequência obrigatória para todos os que passam pelas escolas portuguesas, sejam cidadãos nacionais ou não. Não esqueçamos o facto de que Portugal, após ter sido um país de emigração (o que continua a acontecer), é também agora um país de imigração (faceta recente da nossa sociedade).
Foi neste contexto que surgiu o Currículo Nacional para o Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001), onde são definidas competências gerais, correspondentes ao perfil que qualquer aluno que atravesse os três ciclos do Ensino Básico deve apresentar à saída desse ensino obrigatório e para cuja aquisição e desenvolvimento deverão contribuir todas as disciplinas e ainda as áreas curriculares não disciplinares.
Logicamente, o desenvolvimento de competências não é incompatível com a aquisição de conhecimentos. O próprio Ministério refere essa questão. No Currículo nacional para o Ensino Básico, escreve-se: “(….) Adopta-se aqui uma noção ampla de competência, que integra conhecimentos, capacidades e atitudes e que pode ser entendida como saber em acção ou em uso. Deste modo, não se trata de adicionar a um conjunto de conhecimentos um certo número de capacidades e de atitudes, mas sim de promover o desenvolvimento integrado de capacidades e atitudes que viabilizam a construção de conhecimentos em situações diversas, mais familiares ou menos familiares ao aluno.” (Ministério da Educação, 2001, 9). No mesmo documento, pode também ler-se o seguinte: “Com o significado que lhe é atribuído, a competência não está ligada ao treino para, num dado momento, produzir respostas ou executar tarefas previamente determinadas. A competência diz respeito ao processo de activar recursos (conhecimentos, capacidades, estratégias) em diversos tipos de situações, nomeadamente situações problemáticas. Por isso, não se pode falar de competência sem se lhe associar o desenvolvimento de algum grau de autonomia em relação ao uso de saber.” (Ministério da Educação, 2001, 9).

4. Preocupações desta natureza manifestam-se também a nível internacional, nomeadamente no contexto da União Europeia, tendo surgido diversos documentos em que se apoia a política educativa europeia e que chamam a atenção para competências a adquirir e desenvolver por todos os cidadãos, a fim de poderem inserir-se na vida activa e dar o seu contributo para o progresso social.
Num desses documentos, significativamente intitulado Key competences in the knowledge based society (European Comission, 2004), faz-se referência a oito competências-chave, a desenvolver ao longo da vida, inclusive no contexto educativo: (1) Comunicação na língua materna, (2) Comunicação numa língua estrangeira, (3) Literacia matemática, Ciências e Tecnologia, (4) Tecnologias da Informação e da Comunicação, (5) Aprender a aprender, (6) Competências interpessoal, intercultural e social e competências cívicas, (7) Espírito de iniciativa e (8) Consciência cultural. Como se pode verificar a partir desta enumeração, as competências associadas ao domínio das línguas surgem nos primeiros lugares, sendo a primazia dada à língua materna. Confrontando estas competências com as competências gerais definidas pelo Ministério da Educação para o Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001), pode-se igualmente constatar que há relações entre elas. Tomando como referência o caso particular das línguas, podemos mencionar a Competência Geral 3 (Usar correctamente a língua portuguesa para comunicar de forma adequada e para estruturar pensamento próprio) e a Competência Geral 4 (Usar línguas estrangeiras para comunicar adequadamente em situações do quotidiano e para apropriação de informação).
Aliás, neste momento, a comunicação social alude frequentemente a um processo que podemos situar neste contexto e que afecta particularmente o Ensino Superior. Trata-se, concretamente, da reforma da formação graduada (que confere o grau de Licenciado) e pós-graduada (conferindo os graus de Mestre e Doutor) a ser promovida em todas as instituições do Ensino Superior da União Europeia, tendo por base a Declaração de Bolonha e todos os documentos que reforçam as ideias de base nela consignadas.
Sendo a formação de professores uma responsabilidade das instituições do Ensino Superior, também ela será afectada por este movimento.

5. No âmbito de um ensino orientado para a aquisição e desenvolvimento de competências, tal como ele é definido pelo poder político português (Ministério da Educação, 2001), a língua portuguesa ocupa um lugar de destaque. De facto, como já foi referido, uma das competências gerais definidas está directamente relacionada com o domínio da língua portuguesa. Além disso, no mesmo documento (Ministério da Educação, 2001, 31), especifica-se qual deverá ser o contributo do ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa para a aquisição e desenvolvimento de todas as competências que os alunos deverão ter adquirido e desenvolvido à saída do Ensino Básico.
Tal preocupação levou à referência insistente à transversalidade da língua portuguesa, que se manifesta em duas vertentes: (i) no facto de, através do seu ensino/aprendizagem, os alunos desenvolverem competências que estão na base do seu sucesso escolar e da sua integração sócio-profissional (nomeadamente as competências de compreensão na leitura e produção escrita, cujas lacunas na população em geral são denunciadas pelos estudos sobre o nível de literacia do povo português); (ii) também no facto de o próprio ensino/aprendizagem das outras disciplinas e áreas curriculares não disciplinares poder contribuir para o melhor domínio da língua portuguesa, já que esta é a língua veicular em que este se processa.

6. O ensino da Língua Portuguesa não pode ficar indiferente a esta problemática e, obviamente, o mesmo não pode acontecer com a formação de professores de Língua Portuguesa.
Os professores de Língua Portuguesa dos diferentes níveis de ensino confrontam-se com este desafio, no seu dia a dia, ao tentarem dar cumprimento às directrizes do Ministério da Educação, consignadas em vários documentos, com particular relevo para os programas definidos para os vários níveis de ensino.
Este é também um dos desafios a enfrentar neste momento, a nível da formação graduada (cursos de licenciatura) e da formação pós-graduada (cursos de formação especializada, de mestrado e de doutoramento).
A resposta adequada a estes problemas só poderá ser encontrada a partir de um esforço de investigação em Educação orientado para a caracterização do que se passa actualmente nas escolas neste contexto específico e a definição de formas de ultrapassar as lacunas encontradas, que implicam uma formação de professores de Língua Portuguesa orientada para a operacionalização da sua transversalidade.
A Universidade de Aveiro, através do Departamento de Didáctica e Tecnologia Educativa, tem procurado dar um importante contributo para a construção de uma resposta adequada a este desafio.
Tal esforço redundou na criação do LEIP (Laboratório de Investigação em Educação em Português). A sua Linha de investigação 1, subordinada à temática A transversalidade e a especificidade da Língua Portuguesa no currículo, neste momento, tem como objectivos, entre outros: (i) construir conhecimento sobre a natureza das competências transversais e específicas associadas à compreensão e produção escrita, a desenvolver no âmbito do ensino da língua portuguesa, e também sobre estratégias que permitam fazer um ensino orientado para essas competências; (ii) determinar as representações de professores/futuros professores relativamente à natureza das competências transversais e específicas associadas à compreensão e produção escrita, a desenvolver no âmbito do ensino da Língua Portuguesa, e a estratégias que permitam fazer um ensino orientado para essas competências; (iii) definir linhas gerais de um plano de formação de professores de Língua Portuguesa que permita resolver problemas pedagógico-didácticos relacionados com essas competências.
Alguma da investigação já desenvolvida ou em curso revelou que os professores de Língua Portuguesa se encontram conscientes da importância do momento que se vive actualmente no contexto educativo e do papel de relevo que lhes cabe, mas sentem muitas dúvidas relativamente ao modo de operacionalizar a transversalidade da língua portuguesa, de forma a assegurar o seu contributo para a aquisição e desenvolvimento de competências essenciais ao sucesso escolar e a uma boa integração sócio-profissional por parte dos seus alunos (Neves e Sá, 2005).
Neste momento, trata-se de definir nova investigação que explore o domínio da operacionalização da transversalidade da língua portuguesa em contexto de sala de aula, mas também em programas de formação de professores.

Bibliografia:
BENAVENTE, A. (coord.), ROSA, A., COSTA, A. F. et al. (1996). A literacia em Portugal. Resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Conselho Nacional da Educação.
European Commission (2004). Key competences in the knowledge based society. A framework of eight competences. s.l.: European Commission/Directorate-General for Education and Culture/Lifelong Learning Policy Development.
LOBO, A. S., ARAÚJO, A. I., GIL, D. et al. (2002). O ensino e a aprendizagem do Português na transição do milénio. Lisboa: Associação de Professores de Português.
GAVE (2001). Resultados do estudo internacional PISA 2000. Lisboa: Ministério da Educação/Gabinete de Avaliação Educacional.
Ministério da Educação (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação/Departamento da Educação Básica.
NEVES, R., SÁ, C. M. (2005). Compreender e operacionalizar a transversalidade da Língua Materna na prática docente. Palavras, 27, 21-30.
PERRENOUD, Ph. (1999). Dix nouvelles competences pour enseigner. Paris: ESF.
PINTO, M. G. L. C. (1998). O Estudo nacional de literacia: do recado que encerra às políticas de intervenção que evoca. In M. G. L. C. Pinto, Saber viver a linguagem. Um desafio aos problemas da literacia. Colecção “Lnguística”, nº 11. (pp. 65-137). Porto: Porto Editora.
REY, B. (1996). Compétences transversales ou intentions transversales? In B. Rey, Les compétences transversales en question. (pp. 143-169). Paris: ESF.
REY, B. (1996). Ds intentions transversales pour l’école. In B. Rey, Les compétences transversales en question. (pp. 171-208). Paris: ESF.
VALADARES, L. (2003). Transversalidade da Língua Portuguesa. Rio Tinto: Edições ASA.

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