terça-feira, 16 de outubro de 2007

Sá, 2003

Referência bibliográfica:

SÁ, C. M. (2003). Desenvolver a competência de leitura e compreensão escrita nmo 3º Ciclo do Ensino Básico. In Ana Isabel Andrade e Cristina Manuela Sá (org.), A intercompreensão em contextos de formação de professores de línguas: algumas reflexões didácticas. (pp. 55-63). Aveiro: Universidade de Aveiro.

Texto publicado:

1. Desde que iniciei o projecto de investigação que conduziu à minha dissertação de doutoramento, subordinada ao tema “A banda desenhada: uma linguagem narrativa ao serviço do ensino do Português (Língua Materna)” (SÁ, 1995) e na sequência deste, tenho vindo a trabalhar sobre questões associadas à compreensão na leitura. Esta preocupação manifesta-se também no trabalho que venho a desenvolver a nível de leccionação e de orientação de estágios pedagógicos e ainda de projectos de mestrado e doutoramento.

2. O meu projecto de doutoramento visava investigar até que ponto o uso da banda desenhada como material didáctico, na aula de Língua Materna pode facilitar aos alunos a compreensão do texto narrativo a diversos níveis, seguindo o modelo de compreensão de textos proposto por Kintsch e Van Dijk (KINTSCH e VAN DIJK, 1975, 1984; SÁ, 1996). Neste caso, tratava-se de alunos que frequentavam o 3° Ciclo do Ensino Básico. Este projecto de investigação permitiu-me adquirir uma boa perspectiva relativamente a estas questões.
No decurso do trabalho de investigação que conduziu à minha dissertação de doutoramento, houve dois aspectos que me pareceram extremamente interessantes e que, na altura, devido às próprias características da investigação feita, não pude desenvolver como gostaria.
Um desses aspectos relaciona-se com o trabalho desenvolvido com os professores que participaram na realização da experiência pedagógica que constituía o centro do projecto. Dada a metodologia de tipo experimental a que recorri, não me foi possível aprofundar como desejava esta dimensão da experiência pedagógica realizada.
No entanto, foi muito interessante contactar com colegas que estavam no terreno e discutir com eles os pormenores da preparação das actividades a desenvolver na sala de aula e os resultados da sua realização. Foi também interessante ver como estes professores encaravam de forma crítica os fundamentos teóricos que foi necessário apresentar-lhes, para que eles pudessem compreender a lógica de funcionamento do trabalho a desenvolver com os seus alunos.
O outro relaciona-se com as próprias conclusões a que pude chegar, após a realização deste trabalho de investigação.
Entre outras conclusões, ele permitiu-me constatar que os alunos com quem realizei a experiência se debatiam com alguns problemas extremamente importantes. Estes problemas decorriam não só da lógica subjacente aos programas de ensino em vigor na altura - os actuais têm mais em conta os resultados da investigação recente nas áreas da Psicologia Cognitiva e da Psicolinguística -, como também da forma como se fazia o ensino da Língua Materna.
Verifiquei que:
- a nível da microestrutura , os alunos revelavam problemas de compreensão decorrentes do deficiente conhecimento da natureza e do funcionamento de certas categorias gramaticais extremamente importantes para a estruturação do texto como, por exemplo, os pronomes;
- a nível da macroestrutura , os mesmos alunos revelavam grandes dificuldades em identificar as ideias principais dos textos lidos e estudados na aula, por não estarem habituados a fazer resumos e por não serem sensíveis às marcas linguísticas presentes nos textos que ajudam a identificá-las; é o caso dos conectores, normalmente correspondentes a categorias gramaticais como advérbios, conjunções e locuções adverbiais e conjuncionais;
- a nível da superestrutura , as dificuldades dos alunos resultavam do seu hábito de memorizar “etiquetas” relativas a partes da estrutura do texto, sem terem previamente compreendido a sua natureza e a função por elas desempenhada na dinâmica do texto (neste caso, narrativo); para além disso, tinham sido confrontados com uma estrutura que deveria servir para qualquer tipo de texto (introdução, desenvolvimento, conclusão).
Na sequência dessas constatações, apresentei algumas sugestões didácticas relativas ao desenvolvimento da compreensão da narrativa nestes alunos, que me parece interessante mencionar aqui. Pretendia-se com elas resolver os problemas acima identificados.
Assim, a fim de desenvolver nos alunos a capacidade de compreensão na leitura:
- o estudo do texto ao nível da microestrutura deveria ser acompanhado de actividades destinadas a levá-los a aprofundarem os seus conhecimentos sobre aspectos morfológicos, sintácticos e semânticos-lexicais do funcionamento da Língua Materna, tomando como referência as sugestões apresentadas pelos programas leccionados no âmbito da Reforma Educativa;
- o estudo do texto ao nível da macroestrutura deveria implicar a realização de actividades de resumo de textos;
- o estudo do texto ao nível da superestrutura deveria implicar o recurso a um ensino mais metacognitivo, estimulando-os a reflectirem sobre a natureza de cada categoria da estrutura canónica do texto e a função por ela desempenhada na dinâmica da narrativa.

3. Na sequência desta reflexão e da experiência profissional entretanto adquirida, pareceu-me pertinente definir novas linhas de trabalho, com a finalidade de formar os professores de Línguas para desenvolverem, de forma eficaz, as competências de leitura e compreensão escrita dos seus alunos.
Trata-se de construir conhecimento didáctico sobre a problemática da compreensão na leitura, conhecimento esse que será posto ao serviço da formação de professores, quer inicial, quer contínua.
De facto, a compreensão na leitura parece ser um aspecto extremamente importante no âmbito do ensino/aprendizagem da Língua Materna. É o que depreendemos, por exemplo, do estudo coordenado por Ana Benavente (BENAVENTE, ROSA, COSTA et al., 1996).
Trata-se também de um aspecto da Didáctica de Línguas que se pode articular com a problemática da intercompreensão, permitindo relacionar entre si o ensino da Língua Materna e o ensino de Línguas Estrangeiras.
Com efeito, a compreensão na leitura é, obviamente, uma competência transversal, que desempenhará um papel primordial no ensino/aprendizagem de outras disciplinas do currículo dos alunos e na vida extra-curricular. Ler e compreender textos são operações importantes no dia a dia do cidadão perfeitamente integrado na sociedade.
É óbvio que as aquisições feitas neste domínio, no âmbito da aprendizagem da Língua Materna, se vão reflectir também na aprendizagem de Línguas Estrangeiras por parte dos alunos.
Mas é igualmente inegável o facto de que, ao desenvolverem competências de leitura e compreensão escrita aquando da aprendizagem de outra língua – uma Língua Estrangeira -, os alunos adquirem e desenvolvem estratégias a que poderão também recorrer quando utilizam a sua Língua Materna.
Daí a importância de trabalhar a compreensão na leitura associada à intercompreensão, na formação de professores, inicial e contínua. Deste modo, contribuir-se-á para que os professores, nas suas aulas de Língua (Materna e/ou Estrangeira), recorram a estratégias que desenvolvam competências desta natureza nos seus alunos e, paralelamente, os alertem para a necessidade de as rentabilizar nos dois domínios.

4. A revisão bibliográfica feita permitiu-me constatar que há várias propostas de estratégias a adoptar na sala de aula para a abordagem da leitura e compreensão escrita que poderiam servir de base a este trabalho e promover o estabelecimento de relações entre o ensino da Língua Materna e o de outras línguas e mesmo de outras disciplinas.
4.1. Assim, Constance Weaver (WEAVER, 1980) sugere que é necessário trabalhar, no âmbito do ensino da Língua Materna, com alunos de diversos níveis de ensino, aspectos da leitura que, frequentemente, ficam esquecidos.
4.1.1. Weaver parte do princípio de que ler implica não só ser capaz de extrair sentido do texto lido, como também “emprestar” sentido ao texto lido, invocando, a propósito do seu tema, os conhecimentos que a nossa experiência de vida e as nossas leituras precedentes nos permitiram adquirir.
Com base nestes pressupostos, a autora propõe estratégias de trabalho da leitura e da compreensão na leitura que visam levar os alunos a (re)construir os sentidos veiculados pelos textos e a reflectir sobre a sua linguagem, conduzindo a uma progressiva remediação das dificuldades por eles manifestadas.
Essas estratégias articulam-se em torno de “directrizes”, que funcionam como uma espécie de “regras” para a abordagem da leitura e da compreensão escrita no âmbito do ensino da Língua Materna.
Alguma dessas “regras” já são correntemente aplicadas nas nossas escolas:
- ler textos variados (literários e outros);
- ler alto para os outros, para aprender a fazer da sua leitura um espelho da sua interpretação do texto;
- relacionar as informações veiculadas por textos lidos nas aulas de Língua Materna com conhecimentos adquiridos noutras disciplinas do currículo dos alunos;
- trabalhar a linguagem e o sentido dos textos lidos, através de exercícios de lacunas ou de actividades de substituição sintáctica, expansão, redução, transformação e mesmo reescrita de textos;
- cruzar a leitura com outras actividades relativas ao tratamento da língua (por exemplo, dramatizar textos lidos ou partes destes, escrever a partir dos textos lidos) ou de outras formas de expressão (por exemplo, ilustrar os textos lidos).
Nunca será demais insistir nestas actividades.
Outras dessas “regras” remetem para estratégias que deveriam ser utilizadas com mais frequência:
- ler textos produzidos por si próprio;
- ler silenciosamente, para si, textos extensos, para se habituar a compreender sem precisar de verbalizar;
- treinar vários tipos de leitura, desde a leitura integral do texto até diversas formas de leitura em diagonal;
- partilhar com os outros as suas experiências de leitura, comentando os textos lidos e lendo passagens destes para ilustrar os seus comentários sobre eles.
4.1.2. De entre as directrizes indicadas, algumas remetem mais directamente para estratégias que podem também ser postas em prática no ensino das Línguas Estrangeiras. Podemos referir, como exemplo: trabalhar a linguagem e o sentido dos textos lidos; relacionar as informações veiculadas pelos textos lidos com conhecimentos adquiridos noutras disciplinas; cruzar a leitura com outras actividades relativas ao tratamento da língua ou de outras formas de expressão; treinar vários tipos de leitura.
É também interessante notar que algumas destas directrizes de trabalho contribuem para dar uma dimensão transdisciplinar à disciplina de Língua Portuguesa, já que promovem estratégias de leitura de que os alunos se podem servir no estudo para outras disciplinas. Por exemplo: ler silenciosamente, para si, textos extensos; treinar vários tipos de leitura, desde a leitura integral do texto até diversas formas de leitura em diagonal. Inclusive, o treino destas estratégias pode ser feito a partir de textos de outras disciplinas do currículo dos alunos.
4.2. Mais directamente preocupada com a questão do desenvolvimento da compreensão na leitura, Jocelyne Giasson (GIASSON, 1993) delimita aspectos a trabalhar para o desenvolvimento desta competência nos alunos do 3º Ciclo do Ensino Básico.
4.2.1. Ao nível da microestrutura, seria importante treinar:
- a capacidade de percepção das ligações entre as frases, analisando as funções desempenhadas por certas categorias gramaticais na construção do discurso; de entre elas salientam-se os referentes ou anáforas, que são palavras ou expressões que permitem substituir outras (por exemplo, sinónimos, termos genéricos, pronomes), e os conectores, palavras que permitem ligar proposições ou frases entre si (que podem corresponder a categorias gramaticais como os advérbios, as conjunções e as locuções adverbiais e conjuncionais);
- a capacidade de fazer inferências de vários tipos a partir dos textos estudados na aula;
- a reescrita de textos.
Ao nível da macroestrutura, seria importante treinar:
- a capacidade de determinar o tema de um texto lido;
- a capacidade de distinguir as ideias principais e as ideias secundárias num parágrafo ou num texto;
- a capacidade de resumir textos, aplicando diferentes regras que conduzem à condensação da informação e tendo sempre em conta as limitações cognitivas dos alunos .
Ao nível da superestrutura, seria necessário treinar com os alunos a identificação das categorias da respectiva estrutura e a sua organização no texto.
No caso dos textos narrativos, cuja estrutura é muito convencional e foi muito estudada (cf., por exemplo, KINTSCH, 1977), os alunos terão de aprender a reconhecê-las e a indicar o modo como elas surgem e se relacionam entre si num texto concreto.
Mas há ainda os textos informativos. Para estes, a autora recomenda que a reflexão sobre a sua estruturação e a organização da informação no seu interior seja acompanhada da elaboração de um esquema gráfico, que represente esses elementos para aquele texto e as relações que se estabelecem entre eles. É ainda necessário identificar as marcas textuais que presidem à organização do discurso.
4.2.2. Também as sugestões de Jocelyne Giasson podem ajudar a fazer a ponte entre o ensino da Língua Materna e de Línguas Estrangeiras ou outras, já que todas elas podem ser utilizadas com interesse na análise de textos estudados no âmbito dessas disciplinas.
Do mesmo modo, estas sugestões podem dar uma dimensão transdisciplinar ao ensino da Língua Materna. Com efeito, as competências adquiridas mediante a realização deste tipo de trabalho podem ser aplicadas no estudo das outras áreas disciplinares, que também passa pela leitura e compreensão de textos.
4.3. Para além das duas obras aqui destacadas (GIASSON, 1993; WEAVER, 1980), outras há que poderiam também ser consultadas com a mesma finalidade (cf. BAIN, 1990, 1999; BENTOLILA, CHEVALIER, FALCOZ-VIGNE et al., 1991; FITZGERALD e TEASLEY, 1986; FITZGERALD, SPIEGEL, TEASLEY, 1987; GORDON e BRAUN, 1985; INISAN, VLIEGHE, BOUGEARD et al., 1993; SÁ, 1996).

5. Apesar de todas as sugestões anteriormente referidas, não me parece necessário fazer antecipadamente um levantamento exaustivo de estratégias a utilizar, já que a sua selecção dependerá dos problemas diagnosticados e das características dos alunos com quem os professores tiverem de trabalhar e também do contexto de ensino/aprendizagem em questão. Esse trabalho deverá decorrer do esforço de reflexão desses professores, mesmo que a escolha de estratégias para resolver esses problemas passe pela consulta de trabalhos publicados que tratam destas questões.

Bibliografia referida:
BAIN, Daniel, “Les résumés: nouvelle approche d’un vieux problème”, in: Bernard SCHNEUWLY (dir.), Diversifier l’enseignement du français écrit. Actes du IVe Colloque International de Didactique du Français Langue Maternelle. Neuchâtel/Paris, Delachaux et Niestlé, 1990, pp. 128-135
BAIN, Daniel, “Enseigner la langue maternelle: parcours à travers quelques problèmes, pistes et obstacles didactiques.” in: Paulo FEYTOR PINTO (coord.), Aprender a ensinar Português. Actas do II Encontro Nacional da Associação de Professores de Português. Lisboa, Associação de Professores de Português, 1999, pp. 21-42
BENAVENTE, Ana, ROSA, Alexandre, COSTA, António Firmino da et al., A literacia em Portugal. Resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Conselho Nacional da Educação, 1996
BENTOLILA, Alain, CHEVALIER, Brigitte, FALCOZ-VIGNE, Danièle, La lecture: apprentissage, évaluation, perfectionnement. Paris, Nathan, 1991
BROWN, Anne L. & DAY, Jeanne D., “Macrorules for summarizing texts: the development of expertise”, Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, 22, 1983, pp. 1-14
FITZGERALD, Jill & TEASLEY, Alan B., “Effects of instruction in narrative structure on children’s writing”, Journal of Educational Psychology, 78 (6), 1986, pp. 424-432
FITZGERALD, Jill, SPIEGEL, Dixie Lee, TEASLEY, Alan B., “Story structure and writing”, Academic Therapy, 22, 1987, pp. 255-262
GIASSON, Jocelyne, A compreensão na leitura. trad., Porto, Edições ASA, 1993
GORDON, Christine J. & BRAUN, Carl, “Metacognitive processes: reading and writing narrative discourse”, in: D. L. FORREST-PRESSLEY, G. E. MACKINNON, T. Gary WALLER (eds.), Metacognition, cognition and human performance. Vol. 2, New York, Academic Press, 1985, pp. 1-75
INISAN, Jean-François, VLIEGHE, Élisabeth, BOUGEARD, Patrick et al., Apprendre le récit au collège. Lille, CNDP/CRDP de Lille, 1993
KINTSCH, Walter, “On comprehending stories”, in: Marcel A. JUST, Patricia A. CARPENTER (eds.), Cognitive processes in comprehension. Hillsdale (N. J.), Lawrence Erlbaum Associates, 1977, pp. 33-62
KINTSCH, Walter & VAN DIJK, Teun A., “Comment on se rappelle et on résume des histoires”, Langue Française, 40, 1975, pp. 98-116
KINTSCH, Walter & VAN DIJK, Teun A., “Vers un modèle de la compréhension et de la production de textes”, in: Guy DENHIÈRE (ed.), Il était une fois... Compréhension et souvenir de récits. Lille, Presses Universitaires de Lille, 1984, pp. 85-142
SÁ, Cristina Manuela. (1995), A banda desenhada: uma linguagem narrativa ao serviço do ensino do Português (Língua Materna). Tese de Doutoramento apresentada na Universidade de Aveiro, documento policopiado, 1995
SÁ, Cristina Manuela, O uso da banda desenhada para o estudo da narrativa na aula de língua materna face aos novos programas. Aveiro, Universidade de Aveiro, 1996
VAN DIJK, Teun. A. & KINTSCH, Walter, Strategies of discourse comprehension. New York, Academic Press, 1983
WEAVER, Constance, Psycholinguistics and reading: from process to practice. Cambridge (Massachusetts), Winthrop, 1980

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