quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Referência bibliográfica:


SÁ, C. M. (2008). Transversalidade da língua portuguesa: representações, instrumentos e práticas - um primeiro balanço do seminário. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário "Transversalidade da língua portuguesa: representações, instrumentos e práticas". (pp. 187-197). Aveiro: Universidade de Aveiro/Centro de Investigação Didáctica e Tecnologia na Formação de Formadores/Laboratório de Investigação em Educação em Português [publicado em CD-Rom]

Texto publicado:

Resumo

Com este texto, pretendo fazer um balanço de todos os estudos, concluídos ou em curso, apresentados e discutidos ao longo desta jornada.
Esse balanço passa pela análise do contributo que esses estudos dão para a discussão da problemática relativa à natureza da transversalidade da língua portuguesa e à sua operacionalização, particularmente quando associada ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura.
Depois de aturada reflexão, optei por estruturá-lo em três grandes tópicos.
Em primeiro lugar, refiro algumas constatações positivas que é possível retirar desses estudos e analiso as suas implicações. De um modo geral, estas prendem-se com o facto de os diversos públicos considerados – alunos, futuros professores, professores em exercício, directores de turma, responsáveis educativos, supervisores – terem consciência da natureza da transversalidade da língua portuguesa e da necessidade de a operacionalizar, com relevância para o desenvolvimento de competências em compreensão na leitura, aspecto privilegiado nestes estudos.
De seguida, abordo alguns problemas detectados. Estes centram-se nas formas de operacionalização da transversalidade da língua portuguesa. De facto, esta parece continuar a suscitar dificuldades, apesar da relevância que lhe é dada na reforma do sistema educativo português em curso.
Por último, avanço com algumas sugestões, que poderão ajudar a reforçar os aspectos positivos identificados e a ultrapassar as dificuldades detectadas. Estas responsabilizam o Ministério da Educação, as escolas (através dos seus responsáveis educativos, professores e supervisores) e as instituições do Ensino Superior responsáveis pela formação inicial e contínua de professores (nas pessoas dos docentes, supervisores e investigadores que nelas actuam) na criação de condições para a implementação de uma abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa, que irá promover o sucesso escolar e favorecer a integração social dos alunos que frequentam as nossas escolas.

1. Introdução

Com este texto, pretende-se fazer um balanço de todos os estudos, já concluídos ou em curso, apresentados ao longo deste seminário.
Não se trata propriamente de apresentar, de forma mais resumida, o que cada um dos intervenientes disse, mas sim de retirar do conjunto dos trabalhos apresentados, e que eu orientei, os contributos relevantes para a discussão da problemática da operacionalização da transversalidade da língua portuguesa, particularmente quando associada ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura.
Inicialmente, pareceu-me boa ideia agrupar as ideias de síntese a apresentar de acordo com os três tópicos abordados ao longo de todo o seminário, a saber: representações, instrumentos e práticas.
Mas, ao começar a delinear as possíveis conclusões, depressa verifiquei que tal procedimento não seria produtivo, dada a grande congruência entre as conclusões retiradas dos estudos relativos a esses três aspectos.
Decidi, então, adoptar uma estrutura diferente para a apresentação destas ideias, procurando dar destaque a outros três aspectos que também me pareceram importantes: i) constatações positivas, ii) problemas detectados e iii) algumas sugestões para a resolução desses problemas.
Obviamente, todas estas ideias foram construídas a partir da releitura crítica dos textos relativos aos vários estudos apresentados no decurso deste seminário.

2. Algumas constatações positivas

Tendo em conta todos os públicos inquiridos (alunos, futuros professores e professores em exercício, directores de turma, responsáveis educativos e supervisores), quer através de questionários, quer através de entrevistas, particularmente nos estudos centrados na identificação e caracterização de representações relativas à natureza da transversalidade da língua portuguesa e à sua operacionalização, especialmente quando associada ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura (Barbosa, 2008; Bartolomeu, 2008; Bizarro, 2008; Neves, 2008; Pereira, 2008; Santos, 2008), verificou-se que, de um modo geral, todos têm consciência:
- da importância da transversalidade da língua portuguesa;
- da necessidade de fazer realmente uma abordagem transversal do seu processo de ensino/aprendizagem, no âmbito da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, tendo em conta o seu contributo essencial, tanto para o sucesso escolar (já que esta é uma língua veicular em todo este processo e que as competências desenvolvidas no seu decurso vão ser essenciais para as aquisições e aprendizagens a fazer no âmbito de todas as áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares), como para a integração socioprofissional (o que é demonstrado pelos estudos sobre a literacia do povo português, que tanto chamam a atenção para as dificuldades de exercício de uma cidadania consciente, activa e crítica, devido aos baixos valores de literacia registados, com particular relevo para a leitura);
- paralelamente, do contributo que as restantes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, podem dar para o melhor domínio da língua portuguesa, já que nelas também se comunica em Português, quer oralmente, quer por escrito.
Constatou-se ainda que todos estes públicos valorizam o desenvolvimento de competências em compreensão na leitura e em produção escrita, no seio de uma abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa.
Aliás, dada a indissociabilidade entre a comunicação escrita e a comunicação oral, em qualquer contexto, nomeadamente no de sala de aula, pode-se também deduzir destas representações que a abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa implica igualmente o desenvolvimento de competências neste outro domínio, que não pode nem deve ser esquecido.
Com efeito, de acordo com importantes textos orientadores da reforma curricular em curso, a começar pelo Currículo Nacional do Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001), uma das grandes missões do Ensino Básico, em termos de ensino/aprendizagem da língua portuguesa, é, não só introduzir o aluno no mundo da comunicação escrita e levá-lo a adquirir e desenvolver competências nesse domínio, que ele apenas aflora no contexto extra-escolar, mas também conduzi-lo ao contacto com situações formais de comunicação oral, já que, ao entrar no universo escolar, ele apenas domina a oralidade em contextos familiares.
Estas concepções sobressaem também da análise de alguns instrumentos de que os professores e as escolas podem lançar mão, para promover uma abordagem transversal da língua portuguesa. Mais concretamente, estamos a referir-nos aos Projectos Curriculares de Turma, analisados do ponto de vista da promoção da transversalidade da língua portuguesa e da sua operacionalização associada ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura, em dois estudos apresentados (Bartolomeu, 2008; Bizarro, 2008), o primeiro já concluído e o segundo ainda em curso.
Dois outros estudos já concluídos (Balula, 2008; Carvalho, 2008), ambos centrados no Ensino Básico, embora em ciclos diferentes, e procurando promover o desenvolvimento de competências em compreensão na leitura, através da operacionalização de estratégias/actividades implicando uma abordagem transversal da língua portuguesa, revelaram que é possível fazê-lo, recorrendo a práticas bem fundamentadas e devidamente sistematizadas.
Mais demonstraram que o processo que conduz ao desenvolvimento de tais competências implica igualmente o desenvolvimento de competências em produção escrita e em comunicação oral. E ainda que as referidas competências são de interesse em termos de sucesso escolar, mas também no contexto extra-escolar.
Temos aqui um importante contributo, em termos de práticas a adoptar em sala de aula, não de uma forma cega e acrítica, numa lógica de mera aplicação, mas sim numa perspectiva reflexiva e crítica, essencial para a adequação do trabalho a desenvolver aos públicos em questão, ideia-chave do Projecto de Gestão Flexível do Currículo, elemento essencial da reforma do sistema educativo português em curso.
Convém ainda salientar que estas práticas de sala de aula:
- pressupõem uma participação activa dos alunos no processo de ensino/aprendizagem;
- conduzem a uma maior responsabilização dos mesmos pelas aprendizagens em curso, mesmo no caso em que o trabalho foi realizado com crianças a frequentar o 1º Ciclo (Carvalho, 2008);
- favorecem o exercício de uma cidadania activa e crítica em sala de aula, ao requererem o trabalho individual, mas também o trabalho a pares, em pequenos grupos e em grande grupo;
- contribuem igualmente para o desenvolvimento da autonomia dos alunos.

3. Alguns problemas detectados

Apesar destas conclusões optimistas, que ajudam a ganhar coragem para prosseguir na reflexão em torno da problemática da operacionalização da transversalidade da língua portuguesa, particularmente quando associada ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura, também foram identificados alguns problemas para os quais a investigação em curso pode ajudar a encontrar soluções, como veremos na terceira parte deste texto.
Convém começar por referir que a maior parte destes problemas se relaciona com dificuldades de operacionalização da transversalidade da língua portuguesa, identificadas quer a partir das representações dos públicos inquiridos, quer através da análise de alguns instrumentos, quer ainda aquando da concepção, implementação e avaliação de estratégias/actividades capazes de promover a abordagem transversal do processo de ensino/aprendizagem da língua portuguesa, associada ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura.
Um primeiro grupo de problemas relaciona-se com os professores e os responsáveis educativos das escolas.
Uma parte desses problemas prende-se com:
- a sua deficiente formação neste domínio, referenciada pelos próprios, nos estudos relativos às representações (Barbosa, 2008; Neves, 2008; Santos, 2008), e detectada num dos estudos centrados na análise de instrumentos fundamentais para a operacionalização da transversalidade da língua portuguesa (Bartolomeu, 2008);
- o facto de os responsáveis educativos das escolas terem imensa dificuldade em assumir uma atitude supervisiva em relação aos outros docentes, apesar de reconhecerem que a sua influência pode ser muito importante para estes (Barbosa, 2008);
- a dificuldade que os professores e os responsáveis educativos das escolas manifestam em adoptar uma atitude reflexiva e crítica face às directrizes do Ministério da Educação, limitando-se, na maior parte dos casos, a seguir cegamente essas orientações, mesmo quando não as interpretam da melhor maneira, o que foi facilmente detectado em dois dos estudos relativos a instrumentos ao serviço da operacionalização da transversalidade da língua portuguesa (Bartolomeu, 2008; Martins, 2008).
Uma outra parte destes problemas centrados nos professores e responsáveis educativos das escolas relaciona-se com:
- a sua grande dificuldade em promoverem um trabalho colaborativo e em se envolverem neste, o que é particularmente destacado por um dos estudos associados à identificação de representações (Neves, 2008);
- a sua insistência em permanecerem numa lógica disciplinar, em detrimento de uma abordagem transdisciplinar ou sequer interdisciplinar, o que se depreende dos resultados de estudos relativos às representações (Neves, 2008; Santos, 2008) e, especialmente, dos que foram consagrados à análise de Projectos Curriculares de Turma (Bartolomeu, 2008; Bizarro, 2008).
Outro grupo de problemas detectados está directamente relacionado com a forma como os professores fazem a gestão curricular do processo de ensino/aprendizagem da língua portuguesa.
A partir dos estudos consagrados à identificação e caracterização das suas representações (Neves, 2008; Santos, 2008) e também dos relativos à análise crítica de instrumentos de uma possível operacionalização da transversalidade da língua portuguesa (Bartolomeu, 2008; Bizarro, 2008; Martins, Sá, 2007; Martins, 2008), constatou-se que:
- quando o fazem, valorizam sobretudo a interacção da Língua Portuguesa com determinadas áreas curriculares disciplinares (como a Matemática e o Estudo do Meio, também elas privilegiadas pelo Ministério da Educação, no quadro da reforma educativa em curso), considerando que estas dão um contributo particularmente importante em termos de melhoria do domínio da língua portuguesa;
- manifestam grande dificuldade em determinar o papel a atribuir às áreas curriculares não disciplinares neste contexto;
- de um modo geral, revelam dificuldade em rentabilizar situações de ensino/aprendizagem associadas a outras áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, na promoção de uma abordagem transversal da língua portuguesa e de um melhor domínio da mesma.
Temos depois um grupo de problemas mais directamente relacionados com a área curricular disciplinar de Língua Portuguesa:
- apesar de reconhecerem a importância de se fazer uma abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa, os professores manifestam dificuldade em encontrar estratégias que permitam operacionalizá-la; esta mesma dificuldade é também revelada pelos supervisores, quando se referem à formação dos futuros professores para uma abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa;
- por outro lado, quando procuram desenvolver nos alunos competências associadas a uma abordagem transversal da língua portuguesa, tendem a valorizar muito o seu contributo para o sucesso escolar, esquecendo a sua importância para a formação geral do indivíduo, ou seja, para a sua vida no universo extra-escolar.
Este último grupo de problemas foi detectado a partir de estudos sobre as representações (Neves, 2008; Santos, 2008) e ainda dos três estudos sobre instrumentos (Bartolomeu, 2008; Bizarro; 2008, Martins, 2008).

4. Algumas sugestões para a resolução dos problemas detectados

Se, por um lado, é importante que a investigação destrince entre aspectos positivos relacionados com as problemáticas em estudo e problemas detectados em relação a estas, por outro, também é essencial que apresente algumas sugestões para a resolução desses problemas, sempre no pressuposto de que estas deverão ser encaradas numa perspectiva reflexiva e crítica, tendo em conta as características específicas de cada contexto, e não cegamente aplicadas.
Os estudos apresentados neste seminário também permitiram chegar a algumas sugestões que podem conduzir à solução dos problemas detectados, sugestões essas que urge aplicar no seio de novos estudos, destinados a avaliar a sua validade em diferentes contextos.
As soluções apresentadas em seguida responsabilizam todos os actores do sistema educativo.
Temos, assim, um conjunto de sugestões que visam um reforço da eficácia das medidas tomadas pelo Ministério da Educação e que pressupõem (cf., por exemplo: Barbosa, 2008; Bartolomeu, 2008):
- uma divulgação mais cuidada das suas directrizes junto dos responsáveis educativos das escolas e dos respectivos professores;
- o seu acompanhamento por uma formação adequada para a sua concretização no contexto específico em que cada um se move, que poderá ser dispensada apenas aos responsáveis educativos das escolas, assumindo estes, posteriormente, o encargo de a replicar junto dos restantes professores.
Temos ainda um outro conjunto de sugestões que visam uma maior responsabilização dos responsáveis educativos das escolas e dos respectivos professores (cf., por exemplo: Barbosa, 2008; Bartolomeu, 2008; Neves, 2008):
- a organização de percursos de formação nas escolas, que podem ser promovidos pelos respectivos responsáveis educativos (eventualmente em colaboração com instituições do Ensino Superior locais);
- maior esforço de actualização por parte dos professores, no que diz respeito às directrizes propostas pelo Ministério da Educação para a concretização no terreno da reforma educativa em curso;
- maior empenho na análise reflexiva e crítica dessas mesmas directrizes por parte de responsáveis educativos e professores em cada escola;
- aposta clara no trabalho colaborativo e numa abordagem transdisciplinar do processo de ensino/aprendizagem, que, no caso do ensino/aprendizagem da língua portuguesa, implicará a valorização
• da importância das competências desenvolvidas pelos alunos na área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, quer em termos de sucesso escolar, quer em termos de intervenção consciente e crítica no universo extra-escolar,
• do contributo das restantes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, para um melhor domínio da língua portuguesa;
- a aposta decisiva no desenvolvimento das competências transversais definidas pelo Ministério da Educação (Ministério da Educação, 1999).
Podemos ainda consultar os dois estudos relativos a práticas (Balula, 2008; Carvalho, 2008), com o propósito de neles encontrar inspiração para conceber, implementar e avaliar intervenções didácticas sistematizadas e devidamente fundamentadas, com o intuito de promover uma abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa, que possa simultaneamente contribuir para o desenvolvimento de competências em compreensão na leitura.
Da apresentação das duas intervenções didácticas fica-nos a imagem de um processo de ensino/aprendizagem em que professores e alunos se envolvem activamente e partilham responsabilidades, independentemente do nível de ensino.
Por último, aparece uma sugestão que responsabiliza actores importantes da formação de futuros professores, nas escolas e nas instituições de Ensino Superior, particularmente destinada aos supervisores da Prática Pedagógica associada ao processo de ensino/aprendizagem da língua portuguesa (cf. Neves, 2008).
Esta última sugestão preconiza a abordagem clara da problemática da transversalidade da língua portuguesa e da sua operacionalização, o que subentende um esforço concertado, reflexivo e crítico, por parte de supervisores (da escola onde se desenrole o estágio e da instituição de Ensino Superior que o acompanhe) e de supervisandos.

5. Notas finais

Este texto, contendo uma visão panorâmica dos estudos apresentados e procurando explicitar que contributo estes trouxeram para uma melhor compreensão da problemática da operacionalização da transversalidade da língua portuguesa, particularmente quando associada ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura, permite constatar que, em termos de representações, o tema já está bastante bem explorado.
O mesmo não acontece no que se refere à análise do contributo de instrumentos que a reforma actualmente em curso no sistema educativo português propõe para a operacionalização da transversalidade da língua portuguesa, nem no diz respeito a práticas que a possam promover.
É, pois, nestas duas direcções que é necessário avançar com mais empenho, esperando ter resultados a apresentar num segundo seminário consagrado a esta temática a organizar pelo LEIP num futuro próximo.

Bibliografia

Balula, J. P. R. (2008). Desenvolvimento de estratégias de leitura funcional através do ensino/aprendizagem da língua portuguesa no 3º Ciclo do Ensino Básico. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário “Transversalidade da Língua Portuguesa: representações, instrumentos e práticas”. (pp. 169-185). Aveiro: Universidade de Aveiro.
Barbosa, I. (2008). Transversalidade da língua portuguesa: representações de responsáveis educativos do 1º Ciclo do Ensino Básico. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário “Transversalidade da Língua Portuguesa: representações, instrumentos e práticas”. (pp. 77-92). Aveiro: Universidade de Aveiro.
Bartolomeu, R. (2008). Transversalidade da língua portuguesa no 3º Ciclo do Ensino Básico e Gestão Flexível do Currículo. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário “Transversalidade da Língua Portuguesa: representações, instrumentos e práticas”. (pp. 94-110). Aveiro: Universidade de Aveiro.
Bizarro, R. M. (2008). Transversalidade da língua portuguesa no 1º Ciclo e Gestão Flexível do Currículo. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário “Transversalidade da Língua Portuguesa: representações, instrumentos e práticas”. (pp. 111-119). Aveiro: Universidade de Aveiro.
Carvalho, P. (2008). Estrutura da narrativa e desenvolvimento de competências em lecto-escrita no 1º Ciclo do Ensino Básico. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário “Transversalidade da Língua Portuguesa: representações, instrumentos e práticas”. (pp. 138-168). Aveiro: Universidade de Aveiro.
Martins, M. E., Sá, C. M. (2007). Os manuais de Língua Portuguesa e o desenvolvimento de competências transversais em compreensão na leitura. In A. Barca, M. Peralbo, B. Duarte da Silva & L. Almeida (Eds.), Libro de Actas do Congreso Internacional Galego-Portugués de Psicopedagoxía. A.Coruña/Universidade da Coruña: Número extraordinário da Revista Galego-Portuguesa de Psicoloxía e Educación.
Martins, M. E., Sá, C. M. (2008). Ler… para ser. A vertente transversal da compreensão na leitura em Língua Portuguesa. In Inês Cardoso, Maria da Esperança Martins e Zilda Paiva (orgs.), Da investigação à prática. Interacções e debates. (pp. 128-136). Aveiro: Universidade de Aveiro/Departamento de Didáctica e Tecnologia Educativa.
Martins, M. E. (2008) O papel dos manuais de Língua Portuguesa no desenvolvimento de competências transversais associadas à compreensão na leitura. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário “Transversalidade da Língua Portuguesa: representações, instrumentos e práticas”. (pp. 120-136). Aveiro: Universidade de Aveiro.
Ministério da Educação (1999). Ensino Básico: Competências gerais e transversais. Lisboa: Ministério da Educação/Departamento da Educação Básica. Retirado a 30 de Outubro, 2005, de http://phoenix.sce.fct.unl.pt/jmmatos/EDUMAT/GESTFLEX/BGERAL .
Ministério da Educação (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico. Competências essenciais. Lisboa: Ministério da Educação/Departamento da Educação Básica.
Neves, R. J. R. (2008). A transversalidade da língua portuguesa: representações de supervisores de Português do 3.º Ciclo do Ensino Básico. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário “Transversalidade da Língua Portuguesa: representações, instrumentos e práticas”. (pp. 58-76). Aveiro: Universidade de Aveiro.
Pereira, S. (2008). A transversalidade da língua portuguesa: representações de alunos do 2º Ciclo do Ensino Básico. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário “Transversalidade da Língua Portuguesa: representações, instrumentos e práticas”. (pp. 37-57). Aveiro: Universidade de Aveiro.
Santos, S. (2008). A transversalidade da língua portuguesa: representações de professores e futuros professores do 1º Ciclo do Ensino Básico. In Cristina Manuela Sá e Maria da Esperança Martins (orgs.), Actas do Seminário “Transversalidade da Língua Portuguesa: representações, instrumentos e práticas”. (pp. 19-36). Aveiro: Universidade de Aveiro.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Referência bibliográfica:


Bartolomeu, R. e SÁ, C. M. (2008). A operacionalização da transversalidade da língua portuguesa no âmbito da Gestão Flexível do Currículo.
Palavras, 33, pp. 15-25

Texto publicado:

1. Introdução
Numa sociedade em permanente evolução, onde o indivíduo é constantemente bombardeado por todo o tipo de informação, é premente que os nossos jovens possam compreender essa informação que todos os dias os rodeia e que é vital para a sua integração sócio-profissional na comunidade.
Estará a escola preparada para assumir este novo papel, para fornecer aos alunos “armas” que garantam o seu sucesso profissional e formação pessoal?
Perante o cenário de insucesso escolar que assombra o nosso país, a resposta é evidente. Assim, é imperativo reflectir sobre esta situação, questionando-nos sobre o seu porquê.
As lacunas no domínio da língua portuguesa agravam a situação, não permitindo que o aluno faça aprendizagens essenciais para o seu sucesso.
Sendo conhecedoras das profundas dificuldades dos alunos, nomeadamente no que diz respeito à compreensão na leitura, e tendo em conta o cenário de iliteracia vivido em Portugal actualmente, concluímos que muitas destas dificuldades advêm da falta de hábitos de leitura e do desconhecimento de métodos de trabalho a ela associados.
Em contexto escolar, a responsabilidade recai muitas vezes sobre o professor de Português. Mas, não será esta uma responsabilidade de todos os professores? Não são estas competências transversais a todas as disciplinas? Não deveriam todos os professores contribuir para a sua aquisição e desenvolvimento, transformando-as num utensílio precioso, na vida escolar e extra-escolar?
O Projecto da Gestão Flexível do Currículo constitui a possibilidade dada a cada escola de organizar e gerir autonomamente todo o processo de ensino/aprendizagem, adoptando um currículo contextualizado, adaptado aos alunos em questão.
Assim sendo, colmatar as dificuldades dos alunos no domínio da língua portuguesa, nomeadamente no que diz respeito à compreensão na leitura, deveria ser um dos objectivos dos Projectos Curriculares de Turma.
Por conseguinte, propusemo-nos desenvolver um estudo subordinado ao tema Transversalidade, compreensão na leitura e Gestão Flexível do Currículo (Carvalho, 2006).
O nosso estudo empírico foi norteado pelos seguintes objectivos de investigação: i) analisar a presença da transversalidade da compreensão na leitura em documentos associados à gestão flexível do currículo (Projecto Curricular de Turma), tendo em conta as formas de operacionalização dessa transversalidade nas várias disciplinas do currículo dos alunos; ii) a partir desta análise, traçar linhas de actuação que pudessem contribuir para uma gestão flexível do currículo promotora da transversalidade da compreensão na leitura.

2. A transversalidade da língua portuguesa
2.1. Seu papel na reconfiguração do sistema educativo português
A Reorganização Curricular do Ensino Básico, denominada Projecto da Gestão Flexível do Currículo e regulamentada pelo Decreto-Lei nº 6/2001, surgiu em consequência das importantes mudanças que se têm verificado em todos os sectores da sociedade portuguesa e tenta dar resposta a estas modificações, formando indivíduos que se integrem no meio sócio-profissional, de uma forma adequada e adaptada às exigências de uma sociedade competitiva, e que sejam portadores de “um conjunto de aprendizagens e competências a desenvolver (…) ao longo do ensino básico” (Decreto-Lei nº 6/2001 – Capítulo I, Artigo 2º, ponto 1).
Neste contexto, a disciplina de Língua Portuguesa é considerada como uma das nucleares, verificando-se muitas vezes que as retenções dos alunos se justificam devido às dificuldades apresentadas no domínio da língua portuguesa. Esta surge como uma disciplina universal, transdisciplinar, de discurso transversal a todas as áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, considerando-se que o uso da língua portuguesa deve ser promovido “de forma adequada às situações de comunicação criadas nas diversas áreas do saber, numa construção pessoal de conhecimento.” (Ministério da Educação, 2001:19).
Segundo Rui Vieira de Castro e Maria de Lourdes Dionísio Sousa (1998), numa perspectiva histórica, a transversalidade da língua portuguesa está presente nas várias tentativas de reforma operadas no sistema educativo português, sobretudo a partir de 1986. A Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei nº46/86 de 14 de Outubro), assim como o Decreto-Lei nº 286/89 de 29 de Agosto, são documentos que consideram todos os espaços curriculares como um lugar de desenvolvimento sistemático e orientado de competências no domínio da língua portuguesa, definindo-a como uma “formação transdisciplinar”.
Também na reforma em curso, as competências específicas definidas para a disciplina de Língua Portuguesa, no âmbito do Currículo Nacional do Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001), seguem as propostas do final da década de 80 e da década de 90 do século passado, salientando que a meta do currículo de Língua Portuguesa na educação básica é desenvolver nos jovens um conhecimento da língua que lhes permita atingir competências essenciais para a sua evolução no processo de ensino/aprendizagem e para a sua futura integração sócio-profissional.
A importância destas competências é ainda sublinhada por Inês Sim-Sim, Inês Duarte e Maria José Ferraz (1997), quando afirmam que o ensino/aprendizagem da língua portuguesa, durante a educação básica, deve promover o desenvolvimento de cinco competências, que consideram como nucleares: Compreensão do oral, Leitura, Expressão oral, Expressão escrita e Conhecimento Explícito. Segundo as autoras, estas competências devem ser desenvolvidas não só na área curricular de Língua Portuguesa, mas também por todas as outras áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, pois são fulcrais para a formação científica, social e pessoal do aluno e dão “a todas as crianças e jovens que a frequentam [a escola] idênticas oportunidades de desenvolverem as suas capacidades.” (Sim-Sim et al., 1997: 33).
No entanto, o que se verifica, na realidade, é alguma dificuldade em operacionalizar a transversalidade da língua portuguesa, o que é confirmado pelo estudo levado a cabo por Rómulo Neves, no âmbito da sua dissertação de mestrado (Neves, 2004). De acordo com este estudo (cf. Neves e Sá, 2005), as dificuldades de operacionalização da transversalidade da língua portuguesa reveladas pelos professores de Português derivam de vários factores, dentre os quais se destacam a carência de formação e a resistência dos professores ao trabalho colaborativo. Outros factores invocados são a mobilidade frequente dos professores, a sobrecarga horária com que são muitas vezes confrontados, o número excessivo de alunos por turma, a quantidade de conteúdos programáticos a leccionar, a ausência de controlo das práticas lectivas por organismos competentes e a fuga dos professores das restantes áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares) à responsabilidade em tudo o que se refere à língua portuguesa.
2.2. Sua importância no currículo do Ensino Básico
No que diz respeito à transversalidade da língua portuguesa, no âmbito específico do currículo do Ensino Básico, deveriam ser tidas em conta duas realidades: i) a consciência de que o processo de ensino/aprendizagem da língua portuguesa desenvolve nos alunos competências que eles poderão pôr ao serviço de aprendizagens a fazer noutras áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares), que serão essenciais à sua formação geral; ii) e o facto de todas as outras áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares) poderem contribuir para um melhor domínio da língua portuguesa, pois ela é o instrumento de aprendizagem em todo o currículo (ou seja, é veículo de comunicação entre professores e alunos e um espaço privilegiado para o desenvolvimento das competências cognitivas, linguísticas e comunicativas dos alunos).
Relativamente à primeira das realidades, e retomando a ideia acima referida, a disciplina de Língua Portuguesa é aquela que apresenta mais conteúdos transversais importantes para o desenvolvimento das competências específicas das restantes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares e, consequentemente, para o sucesso escolar do aluno.
Segundo Meireles (2000:47), os domínios em torno dos quais se organiza o currículo escolar da Língua Portuguesa (Ouvir/Falar, Ler, Escrever e Funcionamento da Língua), quando bem sedimentados, conduzem a aprendizagens no âmbito das outras áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, associadas ao desenvolvimento das seguintes competências: ler e seguir instruções, tomar notas a partir das explicações do docente, realizar fichas de trabalho, elaborar um resumo, responder a um questionário, organizar o caderno diário ou realizar um trabalho de pesquisa. Estas competências são essenciais para auxiliar o aluno a aprender a aprender e, futuramente, para a sua integração sócio-profissional.
Mas será que todos os professores têm consciência desta tarefa, fundamental para uma formação integral e uma futura inserção profissional e social dos seus alunos?
Para responder a esta questão, poderíamos referir vários estudos e, dentre eles, auxiliámo-nos de um realizado por Maria Helena Ançã (2001), relativo ao contributo da língua portuguesa para o sucesso escolar nas outras áreas curriculares. A autora pretendia determinar que consciência tinham os estudantes, enquanto alunos do Ensino Superior e futuros professores (de Matemática) em Português, da importância da língua em que iriam ensinar. Após a análise dos dados recolhidos a partir da aplicação de um questionário a um grupo de alunos da Licenciatura em Ensino de Matemática da Universidade de Aveiro, concluiu que estes atribuíam a devida importância à língua portuguesa, enquanto língua materna, mas também enquanto língua privilegiada de ensino e de aprendizagem. Na opinião destes futuros professores, o domínio da língua portuguesa reverteria não só a favor da disciplina de Matemática, neste caso, mas também a favor da formação geral do indivíduo, do cidadão e do professor. O grupo de inquiridos sublinhou ainda que fazia parte das competências a adquirir e desenvolver, durante a frequência dos Ensinos Básico e Secundário, dominar os instrumentos operatórios para uma reflexão sobre a língua portuguesa e sobre o seu funcionamento.
A outra vertente da transversalidade da língua portuguesa (referida anteriormente) está associada ao facto de todas as áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, poderem contribuir para um melhor domínio da mesma, pois, como já foi referido, ela é o instrumento de aprendizagem em todo o currículo: é veículo de comunicação entre professores e alunos e um espaço privilegiado para o desenvolvimento das competências cognitivas, linguísticas e comunicativas dos alunos.
Devido ao seu carácter aberto – associado ao facto de nelas nada estar previamente programado, nem se prever a leccionação de conteúdos específicos no seu âmbito –, as novas áreas curriculares não disciplinares apresentam-se como um espaço ideal para promover o contacto entre as diferentes áreas curriculares disciplinares. Temas ou conteúdos de qualquer disciplina podem ser abordados no âmbito destas áreas, onde tudo pode ser relacionado, questionado e desenvolvido, evidenciando-se assim o seu carácter interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar.
Para além das áreas curriculares não disciplinares, os professores costumam referir as disciplinas de Línguas Estrangeiras e de História como as principais promotoras da transversalidade da língua portuguesa, como confirmam os resultados obtidos por Rómulo Neves (2004: 166), no seu estudo sobre as representações de supervisores de Português no 3º Ciclo do Ensino Básico relativas a diversos aspectos da transversalidade da língua portuguesa.
Este fenómeno é de fácil compreensão, uma vez que as línguas apresentam, no seu currículo, conteúdos semelhantes e pretendem desenvolver as mesmas competências.
É evidente que todas as outras disciplinas (que não sejam a disciplina de Língua Portuguesa) podem e devem desenvolver a transversalidade da língua portuguesa, de acordo com a legislação em vigor.
Este princípio encontra-se definido em diversos documentos oficiais e essa é também a concepção de muitos educadores e até encarregados de educação. Segundo Fonseca (1990:52), “há uma (...) observação, frequentemente feita por professores, pais e até pelos próprios alunos, que dá uma maior dimensão ao problema [transversalidade da Língua Materna] (...): o insucesso noutras áreas do saber ou disciplinas deve-se ou não é mais que insucesso em Língua Materna.”
No entanto, devido ao tradicionalismo do contexto educativo (que fecha cada disciplina em si mesma), à resistência dos professores em abrir as fronteiras da sua sala de aula (para a deixarem invadir por conhecimentos provenientes de outras áreas do saber), à falta de trabalho colaborativo entre professores (que proporcione a troca de experiências edificantes e que contribua para a adequação do processo de ensino/aprendizagem ao grupo/turma em questão), à falta de formação para os professores (que conduz às dificuldades de operacionalização), a transversalidade da língua portuguesa encontra obstáculos, quando se trata de ser desenvolvida pelas restantes áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares).
Em suma, todos os professores reconhecem realmente a sua importância, mas sentem grande dificuldade em concretizar a sua operacionalização.

3. O Projecto da Gestão Flexível do Currículo e a operacionalização da transversalidade da língua portuguesa
Como refere Ana Maria Lopes (2003), o Conselho Europeu, reunido em Lisboa em Março de 2000, instituiu a modernização do sistema educativo como um dos objectivos da década em curso, de modo a que seja possível acompanhar as mudanças sócio-económicas que se verificam em toda a Europa. Das conclusões desta reunião, é oportuno destacar a que refere a necessidade de adaptar os sistemas educativos na Europa às exigências da sociedade, nomeadamente concedendo oportunidades de aprendizagem a diversos grupos sociais. Contribuir para a formação de cidadãos responsáveis e intervenientes é o grande desafio com que o sistema educativo se confronta hoje em dia.
Espera-se que as mudanças que têm actualmente lugar em Portugal, nomeadamente a Reorganização Curricular do Ensino Básico, consignada no Decreto-Lei nº 6/2001 e inspirada nos mesmos princípios que regem o Projecto da Gestão Flexível do Currículo, constituam um passo em frente na concretização desse objectivo. Este projecto assenta no pressuposto de que cada escola – e, mais especificamente, os professores de cada escola – dispõe de autonomia para gerir o processo de ensino/aprendizagem. Pretende-se assim, e tanto quanto possível, atender à realidade e necessidades de cada grupo de alunos, de cada escola e de cada região.
Tem-se consciência de que se pretende uma escolaridade “para todos”, mas, complementarmente, que nem todos têm condições para obter o tão desejado sucesso. Assim sendo, deve-se dar particular atenção às situações de exclusão e tentar integrar no sistema educativo, da melhor forma, o maior número possível de indivíduos, fornecendo-lhes formação e educação. No entanto, reconhece-se que continuarão sempre a existir situações que é impossível controlar.
A partir das orientações curriculares em vigor no âmbito da Gestão Flexível do Currículo e do núcleo de aprendizagens consideradas essenciais a todos os alunos do mesmo ciclo, as escolas e os próprios professores têm oportunidade de determinar as competências cujo desenvolvimento irão privilegiar, seleccionar conteúdos a elas associados e determinar as actividades a implementar nas diferentes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, a fim de que elas sejam efectivamente desenvolvidas. Paralelamente, poderão também organizar o processo de ensino/aprendizagem, em termos de tempo e de métodos, tendo em conta os contextos escolares e a comunidade educativa em causa.
Esta adequação é trabalhada em Conselho de Turma através da elaboração do Projecto Curricular de Turma, uma das inovações desta Reorganização Curricular do Ensino Básico, que serve de base à operacionalização do Projecto da Gestão Flexível do Currículo. De facto, é através dele que se chega aos alunos de uma dada turma, organizando-se e planificando-se o processo de ensino/aprendizagem em função das suas necessidades e interesses específicos. A operacionalização eficaz deste projecto pressupõe o trabalho colaborativo entre professores, principalmente no seio do Conselho de Turma.
A elaboração, implementação e avaliação do Projecto Curricular de Turma contribuem, de forma inestimável, para a operacionalização da transversalidade da língua portuguesa. No Decreto-Lei nº 6/2001, que regulamenta a Reorganização Curricular do Ensino Básico, refere-se que “nesta reorganização assume particular relevo [...] o reforço do núcleo central do currículo nos domínios da língua materna e da matemática” e que “o diploma consagra [...] o domínio da língua portuguesa [...] como formações transdisciplinares”. O artigo 6º do mesmo diploma volta a referir a valorização da língua portuguesa como formação transdisciplinar.
Assim, pretendemos, com o nosso estudo, proceder à análise de Projectos Curriculares de Turma, tendo em conta dois aspectos essenciais: i) a presença da transversalidade da língua portuguesa nesses documentos e ii) propostas relativas à sua operacionalização nas diversas áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares).

4. O estudo empírico
No âmbito do nosso estudo, analisámos os Projectos Curriculares de Turma de todas as turmas do 7º Ano de Escolaridade de duas escolas e procedemos à comparação das observações relativas às duas instituições.
A técnica privilegiada de recolha de dados foi a análise documental, que assentou em duas grelhas construídas para o efeito: uma relativa ao contributo da Língua Portuguesa para o sucesso escolar nas outras áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, e outra relativa ao contributo das restantes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, para o domínio da Língua Portuguesa. Ambas as grelhas se centravam no desenvolvimento de competências associadas à compreensão na leitura.
De acordo com Bardin (1995), a análise documental pode ser definida como uma operação ou conjunto de operações cujo objectivo principal é o tratamento da informação contida em diferentes documentos acumulados para posterior consulta e utilização.
Indo ao encontro das indicações de Pardal e Correia (1995), não dispensámos certas formas de actuação: definição clara do objecto de estudo, adequada formulação de hipótese(s), comparação limitada àquilo que é comparável, apuramento do nível de imparcialidade das fontes.
Para responder a algumas dúvidas que surgiram aquando a análise documental, recorremos a outro método de recolha de dados – a entrevista. Foram entrevistados alguns Directores de Turma responsáveis pela elaboração de Projectos Curriculares de Turma (os que se disponibilizaram para o efeito), também com o objectivo de determinar os princípios pedagógico-didácticos que tinham estado na base dos documentos produzidos, procurando esclarecer pontos menos claros. As entrevistas realizadas foram do tipo semi-estruturado, isto é, feitas com base num guião orientador, que foi utilizado de uma forma flexível. Este estava organizado em três grandes blocos temáticos, que exploravam aspectos importantes para o nosso estudo: i) a caracterização do Director de Turma, ii) o papel do Conselho de Turma na elaboração do Projecto Curricular de Turma e iii) a relação entre o Projecto Curricular de Turma e a transversalidade da língua portuguesa.
Ao confrontar os Directores de Turma entrevistados com os documentos produzidos sob a sua orientação, pretendia-se reconstruir o sentido que eles davam ao conceito de transversalidade e às práticas pedagógicas que deveriam conduzir à operacionalização da transversalidade, particularmente associada à compreensão na leitura. Pretendia-se também levá-los a reflectir acerca das metodologias utilizadas para a construção do Projecto Curricular de Turma e sobre a adequação da ideologia subjacente ao mesmo.

5. Algumas conclusões do estudo
5.1. Decorrentes da análise dos Projectos Curriculares de Turma
Uma primeira conclusão evidente é a ausência de formação no âmbito do Projecto da Gestão Flexível do Currículo (Sá, 2006).
A falta de coordenação entre áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, e as dificuldades de operacionalização da transversalidade da língua portuguesa a ela associada podem ser vistas como consequências dessa falta de formação.
Estes dois factores encontram-se interligados e esse facto torna-se evidente, quando verificamos as disparidades existentes entre os planos relativos a estes dois tipos de áreas curriculares.
Os planos das áreas curriculares não disciplinares estão elaborados de acordo com objectivos a atingir, que não encontram correspondência nas competências a desenvolver pelas áreas curriculares disciplinares indicadas nos respectivos planos, o que prova a falta de articulação entre áreas curriculares. Mas as áreas curriculares não disciplinares definem estratégias/actividades que se destinam a atingir os objectivos delineados, onde é notória a operacionalização do desenvolvimento de competências transversais associadas ao domínio da língua portuguesa. Por seu lado, as áreas curriculares disciplinares não fazem qualquer referência a objectivos, mencionando somente as competências específicas sem indicar qualquer estratégia que as desenvolva, que pouco promovem a transversalidade da língua portuguesa. Constituem excepção as Línguas Estrangeiras, a História e a Geografia.
Esta constatação explica-se pelo facto dos programas propostos pelo Ministério da Educação para as áreas curriculares disciplinares de línguas se apresentarem já organizados de forma a promoverem a transversalidade da língua portuguesa. O facto de nestas áreas curriculares disciplinares serem exploradas praticamente as mesmas competências linguísticas decorre da proximidade existente entre elas, dado que todas pretendem promover o ensino/aprendizagem de uma língua.
A disciplina de História – pertencente, no sistema antigo, à área das Humanidades, juntamente com as línguas – apresenta também afinidades com a disciplina de Língua Portuguesa e o seu carácter documental e investigativo promove o desenvolvimento de competências associadas à compreensão na leitura.
Por outro lado, a disciplina de Geografia, apesar de ser uma ciência social, tem consciência da importância da transversalidade da língua portuguesa e tenta operacionalizá-la, constituindo uma excepção dentro das restantes áreas curriculares disciplinares, revelando que os docentes desta disciplina consideram a língua portuguesa como um instrumento essencial para que os alunos desenvolvam as competências da disciplina.
No entanto, as restantes áreas curriculares disciplinares não promovem, nas suas competências específicas, a transversalidade da língua portuguesa.
São várias as causas que estão na origem desta situação, destacando-se a persistência do Ministério da Educação em implementar reformas sem proporcionar aos docentes a formação necessária para as operacionalizar e a tendência dos professores para não questionarem as directrizes do Ministério da Educação, aplicando-as sem uma reflexão necessária a uma correcta aplicação, que favoreça os alunos no processo de ensino/aprendizagem.
A ausência de referências a objectivos e a menção de competências sem indicação de como vão ser operacionalizadas, referindo as estratégias/actividades previstas para o efeito, resultam do facto dos professores não terem ainda interiorizado o conceito de competência, à luz do novo paradigma crítico-reflexivo em se enquadra a Reorganização Curricular do Ensino Básico. Como consequência da indefinição que rodeia o conceito de competência, surge a identificação deste conceito com o de objectivo, confundindo-se o significado dos dois conceitos.
Esta última observação conduz-nos a uma outra conclusão retirada do nosso estudo: a ausência de reflexão por parte dos docentes.
Segundo Maria do Céu Roldão (2000: 17), “pensar curricularmente significa tão só assumir conscientemente uma postura reflexiva e analítica face ao que constitui a sua prática quotidiana, concebendo-a como campo de saber próprio a desenvolver e aprofundar não como normativo que apenas se executa sem agir sobre ele.”
Essa consciência só é conseguida através de uma profunda reflexão acerca das práticas lectivas, permitindo operacionalizar os conceitos de adequação e flexibilidade, exigidos pelo paradigma crítico-reflexivo e que são a expressão de toda a ideologia que está na base do Projecto da Gestão Flexível do Currículo.
5.2. Decorrentes da análise dos dados recolhidos a partir das entrevistas aos Directores de Turma
Se a análise dos Projectos Curriculares de Turma revelou dificuldades de operacionalização relacionadas com a transversalidade da língua portuguesa, estas tornaram-se ainda mais evidentes quando se procedeu à análise das respostas dadas pelos Directores de Turma entrevistados. Todos sublinhavam a importância da transversalidade da língua portuguesa, mas, no momento de explicitar como procediam à sua operacionalização, surgiam dificuldades. Os exemplos dados revelavam a falta de uma reflexão rigorosa e profunda acerca dos benefícios da transversalidade da língua portuguesa, sendo as sugestões bastante vagas: leitura silenciosa e expressiva de textos, leitura de textos e notícias actuais e exploração das obras de leitura obrigatória.
A análise das respostas dos Directores de Turma entrevistados confirmou uma outra observação feita a partir da análise dos Projectos Curriculares de Turma, levando-nos a tomar consciência da ausência de trabalho colaborativo nas nossas escolas. No que se refere à análise dos Projectos Curriculares de Turma, tal facto é comprovado, por exemplo, pela falta de articulação entre áreas curriculares disciplinares e não disciplinares e também entre competências e conteúdos indicados para as diferentes áreas curriculares disciplinares. A partir da análise das respostas às entrevistas, apercebemo-nos da escassez de reuniões do Conselho de Turma especificamente consagradas à elaboração do Projecto Curricular de Turma, do não exercício da função de supervisor por parte do Director de Turma, da atribuição exclusiva do desenvolvimento curricular nas áreas curriculares não disciplinares ao professor responsável pela sua leccionação (numa das escolas), tudo factores que levam a pressupor uma ausência de trabalho colaborativo entre os professores envolvidos neste processo.
Os professores não trabalham em conjunto, porque tal exige mais tempo de dedicação à escola, porque não querem partilhar saberes (pois receiam a avaliação implícita em tal situação) e ainda porque não admitem hierarquias (indispensáveis a uma boa orientação dos trabalhos).
Assim, a partir das entrevistas aos Directores de Turma, reforçámos a ideia de que a formação, a reflexão e o trabalho colaborativo são imprescindíveis para o sucesso de qualquer reforma, principalmente de uma reforma que implica mudança de mentalidades, como é o caso da Reorganização Curricular do Ensino Básico.

6. Algumas sugestões decorrentes do estudo
As sugestões apresentadas no âmbito deste estudo têm como objectivo contribuir para a elaboração de Projectos Curriculares de Turma que reflictam formas de operacionalização da transversalidade da língua portuguesa, nomeadamente associada ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura.
Foi referido, por várias vezes, que, para tornar possível esta transversalidade, é necessário que exista uma contiguidade entre a Língua Portuguesa e as demais áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, contiguidade essa que se deve manifestar tanto ao nível da planificação, como ao nível da execução, para, assim, ser possível desenvolver competências transversais.
Esta contiguidade implica que a construção do currículo seja encarada como “um processo gradual e contínuo, envolvendo observação, reflexão e ajustamentos” (Aido, 2001:36), o que requer trabalho colaborativo por parte dos professores, pois dele depende a verdadeira cultura interdisciplinar.
Assim, deveria constar do horário dos professores um espaço especificamente destinado a este trabalho colaborativo. Entre outras finalidades, esse espaço seria consagrado à concepção, elaboração, avaliação e reformulação do Projecto Curricular da turma em questão, trabalho esse que favoreceria a articulação entre as diversas áreas do currículo, particularmente em termos de abordagem da transversalidade da língua portuguesa e da sua operacionalização.
As áreas curriculares não disciplinares deveriam explorar temas aglutinadores e as actividades/estratégias aí desenvolvidas deveriam ser planificadas de acordo com os objectivos de diversas áreas curriculares disciplinares, articulando os conteúdos e promovendo o desenvolvimento de competências transversais.
O Ministério da Educação deveria também promover a transversalidade da língua portuguesa de uma forma mais activa, pois é necessário, não só legislar, mas também mudar mentalidades.
As acções de formação poderiam não fazer parte do horário dos professores, mas deveriam ser creditadas, contribuindo para a progressão na carreira do docente, motivando, desta forma, para a sua frequência.
Deveriam também contribuir para que todos os professores tomassem consciência da importância do desenvolvimento de competências associadas ao domínio da língua portuguesa – quer no âmbito da área curricular do mesmo nome, quer no âmbito das restantes áreas curriculares disciplinares. Paralelamente, todos os professores deveriam ser alertados para o papel a desempenhar pelas novas áreas curriculares não disciplinares neste contexto.
Pensamos que, para que estas áreas curriculares não disciplinares atinjam os objectivos para cuja concretização foram propostas, seria benéfico que a sua dinamização fosse assegurada por, pelo menos, dois docentes de áreas diferentes. Assim, seria combatida a tendência para trabalhar conteúdos directamente relacionados com a disciplina do docente responsável pela sua leccionação, não alimentando a ideia do “saber estanque”.
Além disso, os docentes responsáveis por estas áreas deveriam ter como função a sua coordenação efectiva, aproveitando as reuniões do Conselho de Turma para pedir sugestões a todos os docentes, visando o desenvolvimento curricular destas áreas e promovendo, dessa forma, o trabalho colaborativo.
Os órgãos de gestão da escola deveriam também proporcionar as condições logísticas necessárias a este processo – por exemplo, através da criação de espaços de diálogo e reflexão participada –, pois só assim se poderá proceder à operacionalização de todo este processo.
Os Directores de Turma deveriam desenvolver uma concepção supervisiva das suas funções, mediante uma formação adequada ao seu exercício.
Relativamente à elaboração dos Projectos Curriculares de Turma, com vista à promoção da transversalidade da língua portuguesa (principalmente na área curricular disciplinar do mesmo nome), essa questão deveria ser primeiro debatida em Departamento, para depois as diferentes áreas curriculares disciplinares poderem articular-se entre si em Conselho de Turma, tendo os diversos professores já trabalhado nesse campo, facilitando a sua operacionalização.
Relativamente às áreas curriculares não disciplinares, a respectiva equipa coordenadora deveria também programá-las no sentido de promover a referida transversalidade, para, depois, ser operacionalizada, contando com a colaboração do Conselho de Turma.
Para uma execução funcional do Projecto Curricular de Turma, seria recomendável que o Conselho de Turma se reunisse mais frequentemente, com o objectivo de o avaliar e de o reformular, adequando-o constantemente à turma em questão.
Para fazer a avaliação do Projecto Curricular de Turma, seria também muito importante a opinião dos alunos. Eles deveriam ser frequentemente auscultados acerca do seu processo de aprendizagem, sendo-lhes permitido fornecer sugestões que contribuíssem para uma melhor adequação do Projecto Curricular de Turma às suas necessidades.
Por fim, para que os diversos órgãos escolares actuassem no sentido de promover a transversalidade da língua portuguesa, o Departamento de Língua Portuguesa deveria desempenhar um papel mais preponderante no meio escolar, promovendo actividades que apelassem à acção dos outros professores nesse sentido, incluindo mesmo acções de formação.

BIBLIOGRAFIA
Obras consultadas
Aido, João Pedro (2001). “A Gestão Flexível do Currículo: o ponto de vista das associações”. In V. Freitas, M. M. Vieira, P. Abrantes et al., Gestão Flexível do Currículo – contributos para uma reflexão crítica. Lisboa: Texto Editora, pp. 31-39.
Ançã, Maria Helena (2001). “Vamos dar aulas em Português”. Noésis, 59, pp. 38-40.
Bardin, Laurence (1995). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.
Carvalho, Ana Rita de Figueiredo Bartolomeu (2006). Transversalidade, compreensão na leitura e Gestão Flexível do Currículo. Dissertação de mestrado não publicada. Aveiro: Universidade de Aveiro.
Castro, Rui Vieira de e Sousa, Maria de Lourdes (1998). “Hábitos e atitudes de leitura dos estudantes portugueses”. In R. V. Castro e M. L. Sousa (org.), Entre linhas paralelas – estudos sobre o português nas escolas. Braga: Angelus Novus, pp. 39-54.
Fonseca, Eduardo (1990). Paradigmas, programas e ensino da língua materna. Revista Portuguesa de Educação, 3, 51-61.
Lopes, Ana Maria (2003). Projecto de Gestão Flexível do Currículo – os professores num processo de mudança. Lisboa: Ministério da Educação/Departamento de Educação Básica.
Meireles, Maria Matilde Câmara. (2000). A narrativa em supervisão – a oralidade na competência educativa do professor de Língua Materna. Aveiro: Universidade de Aveiro. [Documento policopiado].
Ministério da Educação (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico Competências Essenciais. Lisboa: Ministério da Educação.
Neves, Rómulo (2004). Transversalidade da Língua Materna no 3º ciclo do Ensino Básico: representações de supervisores de Língua Portuguesa sobre a sua natureza e formas de operacionalização nos domínios da leitura e da escrita em aulas de Língua Materna. Dissertação de mestrado não publicada. Braga: Universidade do Minho.
Neves, Rómulo e Sá, Cristina Manuela (2005). “Compreender e operacionalizar a transversalidade da Língua Materna na prática docente”. Palavras, 27, pp. 21-30.
Pardal, Luís e Correia, Eugénia (1995). Métodos e técnicas de investigação social. Porto: Areal Editores.
Roldão, Maria do Céu. (2000). Formar professores. Os desafios da profissionalidade e o currículo. Aveiro: Universidade de Aveiro/CIFOP.
Sá, Cristina Manuela (2006). “Novas tendências na formação de professores de Língua Portuguesa”. Til. Fragmentos de Educação., 1, pp. 29-31.
Sim-Sim, Inês, Duarte, Inês e Ferraz, Maria José (1997). A língua materna na educação básica. Competências nucleares e níveis de desempenho. Lisboa: Ministério da Educação/Departamento da Educação Básica.
Legislação consultada
Lei 46/86, de 14 de Outubro – Lei de Bases do Sistema Educativo.
Decreto-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto – Estrutura Curricular.
Despacho nº 9590/99, de 14 de Maio – Projecto de Gestão Flexível do Currículo.
Decreto-Lei nº 6/2001, de 18 de Janeiro – Reorganização Curricular do Ensino Básico.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Martins e Sá, 2008c

Referência bibliográfica:


MARTINS, M. E. e SÁ, C. M. (2008). Ser leitor no séc. XXI. Importância da compreensão na leitura para o exercício pleno de uma cidadania responsável e activa.
Saber&Educar, 13, pp. 235-246

Texto publicado:

Resumo

Entre o fim do século passado e o início deste, o sistema educativo português tem conhecido várias reformas, cujo objectivo central é procurar adaptá-lo às características da sociedade moderna.
Vivemos numa sociedade marcada pela circulação da informação – nomeadamente, da informação escrita – e pela massificação do acesso às novas tecnologias da comunicação – principalmente a Internet –, onde a compreensão na leitura tem uma importância cada vez mais proeminente e a falta de competências neste domínio dificulta a integração plena do indivíduo na sociedade e a sua inserção no mercado de trabalho.
Assim, no centro do actual debate sobre o papel da Educação no desenvolvimento humano, deve estar a construção de um ensino orientado para a aquisição e desenvolvimento de competências transversais, particularmente no que se refere ao domínio da compreensão na leitura. Dentro desta problemática, daremos especial atenção às questões surgidas em torno do conceito de literacia, em que os aspectos centrados na compreensão na leitura ocupam um lugar de relevo, dado que as competências neste domínio contribuem decisivamente para moldar a nossa memória colectiva e para garantir o exercício de uma cidadania responsável e activa.
Outro dos objectivos desta comunicação é determinar em que medida os manuais de Língua Portuguesa actualmente existentes vão ao encontro dos princípios que definem um ensino/aprendizagem orientado para o desenvolvimento de competências transversais no domínio da compreensão na leitura, por serem um dos recursos educativos mais utilizados nas escolas portuguesas, por professores e alunos. Com esse fim, construímos uma grelha de análise de manuais desta área curricular, tendo em conta os princípios definidos pela literatura da especialidade e as directrizes propostas pela política educativa portuguesa.

Palavras-chave: Transversalidade; Compreensão na Leitura; Manuais escolares de Língua Portuguesa, Educação para a Cidadania


Introdução

Vivemos numa sociedade que se alimenta da circulação da informação, nomeadamente da informação escrita, e que distingue os seus membros pelos seus níveis de acesso a esta, bem como de capacidade de uso dessa mesma informação. É, pois, natural que se atribua às capacidades de compreensão e de produção da escrita um interesse cada vez mais proeminente.
O ensino/aprendizagem da língua portuguesa deverá desempenhar um papel crucial neste contexto.
Deste modo, “através da disciplina de Língua Portuguesa, o aluno deverá aprender a usar a linguagem, a defender-se da linguagem, a interagir através da linguagem, a intervir com os outros através da linguagem. E esse será o domínio com que o aluno parte, no presente da escola, para o sucesso noutras disciplinas e, no futuro, para a integração na vida.” (Silva, 2000: 366).
Urge, de igual forma, reflectir sobre o concepção de literacia partilhada pela comunidade internacional, a qual abrange um conjunto de práticas sociais que envolvem textos escritos e é definida como a competência que permite a compreensão e o uso de textos escritos “to achieve one’s goals, to develop one’s knowledge and potential, and to participate in society” (OECD, 2001: 4).
Segundo Sousa (1999), para ter leitores, é indispensável formá-los, não basta desejá-los. Formar leitores exige da escola, e dos vários intervenientes no processo educativo, atitudes que estimulem o pensamento, o sentido crítico, que respondam a desafios, apostando em objectos de leitura ricos e diversificados e numa postura de diálogo e cooperação, desde o início da escolaridade.
Neste contexto, e por serem um dos recursos educativos mais utilizados, tanto no ensino/aprendizagem da língua portuguesa como no das outras áreas curriculares, é necessário debater, à luz da política educativa portuguesa e da literatura da especialidade, a importância dada pelos manuais escolares de Língua Portuguesa ao desenvolvimento de competências nos alunos, particularmente no que diz respeito à compreensão na leitura.

Ensino/aprendizagem da língua portuguesa e desenvolvimento de competências transversais

A transversalidade promove uma compreensão abrangente dos diferentes objectos de conhecimento, bem como a percepção da implicação do sujeito na produção do conhecimento, alterando profundamente as relações entre ambos.
Tendo em conta esta realidade, o Ministério da Educação (1999) definiu competências transversais essencialmente relacionadas com a aquisição de saberes metodológicos que permitem a realização de aprendizagens de natureza cognitiva e afectiva.
Estas competências atravessam todas as áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares) propostas pelo currículo, ao longo de toda a escolaridade, sendo igualmente relevantes noutras situações da vida dos alunos.
De facto, o gosto pela pesquisa, a capacidade de procurar informação em vários contextos e suportes, a capacidade de comunicação, o recurso a estratégias cognitivas, o desenvolvimento de um pensamento autónomo a par da capacidade para cooperar com outros constituem exemplos de aspectos centrais da aprendizagem e devem ser considerados como elementos fundamentais do currículo.
Uma escolarização significativa, por um lado, abre espaço para a inclusão de saberes extra-escolares, possibilitando a referência a sistemas de significado construídos na realidade em que os alunos se inserem. Por outro lado, requer o desenvolvimento de processos que contribuam para que os alunos sejam progressivamente mais activos e mais autónomos na sua própria aprendizagem.
No âmbito da transversalidade, assume um papel de incondicional relevância a área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, como promotora de saberes instrumentais indispensáveis à aquisição de outros saberes relacionados com a formação global do aluno (Valadares, 2003).
Tendo em conta que toda a experiência escolar é, em larga medida, uma experiência linguística e que os alunos precisam de desenvolver capacidades para funcionar, efectivamente, com a língua falada e escrita, então temos de assumir as tarefas de educação linguística como projecto colectivo e transversal.
A transversalidade da língua portuguesa manifesta-se, por um lado, através do desenvolvimento, nos alunos, de competências importantes para o seu sucesso escolar e a sua integração socioprofissional através do processo de ensino/aprendizagem associado à área curricular disciplinar de Língua Portuguesa e, por outro lado, através do contributo que o ensino/aprendizagem nas outras áreas curriculares disciplinares e não disciplinares poderá dar para o melhor domínio da língua portuguesa, uma vez que esta é a língua veicular em que todo trabalho escolar se processa (Sá, 2006).
Esta abordagem pretende responder ao desafio de aproximar os discursos oficiais dos programas das diversas áreas que compõem o currículo formal do Ensino Básico em Portugal, usando para tal o vector da língua através da qual cada uma dessas áreas curriculares – disciplinares ou não disciplinares – se deixa apreender (Rey, 1996).
Hoje em dia é já natural reconhecer-se “a Língua Materna como elemento mediador que permite a nossa identificação com os outros e a descoberta e compreensão do mundo que nos rodeia. Tem-se como seguro que a restrição da competência linguística impede a realização integral da pessoa humana, isola da comunicação, limita o acesso ao conhecimento, à criação e fruição da cultura e reduz ou inibe a participação na praxis social (Ministério da Educação, 1998: 141).
A língua portuguesa é ainda a língua de acolhimento das minorias linguísticas que vivem no país. Deste modo, o seu domínio é também muito importante no desenvolvimento individual, no acesso ao conhecimento, na integração social, no relacionamento social, no sucesso escolar e profissional e no exercício pleno da cidadania de todos aqueles que têm a língua portuguesa como língua estrangeira ou como língua segunda.
Assim, esta orientação transdisciplinar no plano da educação linguística implica alterações na gestão do currículo e mudanças nas atitudes dos professores para com as suas especialidades, porque exige o desenvolvimento de novas competências no âmbito da análise e da intervenção sobre as práticas linguísticas (Castro, 1997).
Um estudo, levado a cabo por Neves (Neves, Sá, 2005), junto de supervisores de Língua Portuguesa a leccionar no 3º Ciclo do Ensino Básico, permite concluir que são ainda muitos os factores que impedem a adopção de uma perspectiva transversal no âmbito da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa. Dentre eles, destacam-se o desconhecimento das múltiplas vantagens das competências transversais e da forma de as operacionalizar.
No entanto, a presença da língua portuguesa no Ensino Básico tem vindo a ser encarada cada vez com mais afinco e seriedade, dado que esta desempenha um papel extremamente importante na formação dos alunos a todos os níveis, se se tiver em conta as inúmeras possibilidades abertas pela sua transversalidade.
A aula de Língua Portuguesa “ao convocar todos os conhecimentos imprescindíveis a uma análise da língua e ao seu exercício, transmissão e fruição, apresenta-se, não como um somatório desses conhecimentos, mas sim apoiada numa transversalidade disciplinar que exige o recurso a inquietações pedagógicas e didácticas derivadas das práticas encontradas nessa transversalidade.” (Sequeira et al, 1989: 157).

O ensino/aprendizagem da compreensão na leitura associado à operacionalização da transversalidade da língua portuguesa

Se pensarmos no papel desempenhado pela língua portuguesa nas nossas vivências sociais, facilmente concluiremos que o seu adequado domínio é um factor essencial da formação dos cidadãos. Este facto confere um lugar de destaque à área curricular disciplinar de Língua Portuguesa no contexto do nosso sistema educativo, já que (Sá, 2004: 7) o seu processo de ensino/aprendizagem deve “conduzir a aprendizagens que se irão revelar úteis na frequência de qualquer outra disciplina do currículo do aluno e ainda pela vida fora.”
A realização deste propósito passa, entre outros aspectos, pelo desenvolvimento de competências no domínio da compreensão na leitura e da expressão escrita.
De facto, a leitura, a par da escrita, é uma das actividades mais importantes do universo social e escolar dos indivíduos. A sociedade actual e as suas constantes mutações exigem uma profunda reflexão sobre o que é a leitura, o papel que ocupa no currículo e a forma como é ensinada e avaliada.
Compete à Escola, através da acção dos professores e de outros agentes que nela se integram, e da influência dos manuais, dentre outros elementos que podem afectar o processo de ensino/aprendizagem, colmatar as graves lacunas detectadas em estudos relativos à literacia.
É também à Escola que compete, em grande parte, a formação do leitor do séc. XXI, que se confronta com desafios cada vez mais complexos.
Assim, esta terá que adequar as suas estratégias às necessidades do mundo actual, para poder ultrapassar os problemas detectados e contribuir para a melhoria do desempenho dos alunos, futuros cidadãos.
Segundo Sim-Sim (2003: 5), “A complexidade envolvida no processo de aprendizagem da leitura requer do aprendiz de leitor motivação, vontade, esforço e consciencialização do que está a ser aprendido. Por sua vez a morosidade inerente ao domínio desta competência exige, também, que o seu ensino não se limite à descodificação alfabética e se prolongue, de forma sistematizada e consistente, ao longo de todo o percurso escolar.”
A compreensão é uma das competências transversais e, mais especificamente, a compreensão na leitura desempenha um papel primordial na aprendizagem de outras disciplinas do currículo dos alunos e na vida extra-escolar. Podemos concluir que ler e compreender textos são operações importantes no dia a dia do cidadão perfeitamente integrado na sociedade.
Muitas são as funções desempenhadas pela leitura na escola e na vida. Lê-se para ampliar os limites do conhecimento, para obter informação, para descontrair, para reflectir, … Um ensino/aprendizagem eficaz da leitura apoia-se no sentido de prática social e cultural que esta possui. Só desta forma os alunos poderão entender a sua aprendizagem como um meio de ampliar as possibilidades de comunicação, desfrute e acesso ao conhecimento (cf. Colomer: 2001).
A língua portuguesa, quer como língua materna do sujeito, quer como língua de acolhimento, é fundamental no processo de comunicação e no processo de estruturação do pensamento. Cabe à área curricular disciplinar de Língua Portuguesa promover a aquisição e desenvolvimento de competências, concretamente em compreensão na leitura que possibilitem um uso correcto da língua para comunicar adequadamente e para estruturar os pensamentos.
Contudo, a aquisição e desenvolvimento de competências em compreensão na leitura não se pode restringir à aula de Língua Portuguesa. Todas as áreas curriculares disciplinares e não disciplinares devem estar ao serviço da referida aquisição e desenvolvimento. Assim se reforça mais uma vez a grande importância da transversalidade da língua portuguesa associada à compreensão na leitura.
Corroborado que está o importante papel da Língua Portuguesa no desenvolvimento de competências transversais, necessárias para o sucesso do aluno dentro e fora da escola e ao longo da sua vida, concretamente no domínio da compreensão na leitura, centramos a nossa atenção no conceito de literacia, no nível de iliteracia da população portuguesa e no contributo que a escola e a sociedade portuguesas poderão dar para a resolução dos problemas dele decorrentes.

Papel da operacionalização da transversalidade da língua portuguesa na resolução de problemas de iliteracia

Entende-se literacia como a capacidade de processamento de informação escrita de uso corrente contida em materiais impressos vários (gráficos, documentos, textos) (Benavente et al., 1996: 4).
Segundo Sim-Sim (1993: 7), o conceito de literacia diz respeito à “capacidade de compreender e usar todas as formas e tipos de materiais escritos requeridos pela sociedade e usados pelos indivíduos que a integram.”
De acordo com o Relatório Nacional sobre o PISA (GAVE, 2001), a “Literacia de leitura foi definida como a capacidade de cada indivíduo compreender, usar textos escritos e reflectir sobre eles, de modo a atingir os seus objectivos, desenvolver os seus próprios conhecimentos e potencialidades e a participar activamente na sociedade.”
Estudos nacionais e internacionais ajudam-nos a compreender alguns dos problemas que foram causados pela massificação do ensino. Reforçam, de igual forma, a importância extrema da leitura no âmbito escolar e extra-escolar, nomeadamente na obtenção do sucesso escolar e social. Com fracas competências em compreensão na leitura, os alunos são cidadãos iletrados, pouco interventivos e pouco críticos, o que condicionará o desenvolvimento económico e social do nosso país.
Actualmente sentimos uma grande preocupação com as questões relacionadas com a compreensão na leitura.
Estudos elaborados, quer a nível nacional, quer a nível internacional, demonstram que os nossos alunos apresentam falhas significativas ao nível da compreensão na leitura. De facto, muitos dos alunos que concluem o Ensino Básico saem da escola com várias lacunas ao nível da compreensão na leitura, o que torna difícil a sua inserção em sociedade, ou seja, as competências por eles desenvolvidas ao longo da escolaridade obrigatória não são suficientes para lhes proporcionarem uma vida pessoal e profissional de sucesso e o exercício de uma cidadania crítica e interventiva.
Deste modo, desenvolver competências de compreensão na leitura é um dos objectivos essenciais da escolarização dos cidadãos e um contributo fundamental para a sua integração social.
A capacidade de usar a informação escrita é uma questão de sobrevivência na vida do cidadão, um factor de facilidade no acesso à cultura comum e na sua partilha, na mobilidade social. A incapacidade de o fazer constitui um factor de redução do nível e da qualidade da participação social, logo, de exclusão social.
Por estas e outras razões, os problemas decorrentes de dificuldades em leitura e em escrita deveriam ser abraçados por todos, de forma a se colmatarem as várias lacunas detectadas.
À escola cabe um papel importante na resolução de problemas de literacia. Urge intensificar as medidas que se relacionam com a alteração da abordagem escolar da compreensão na leitura.
Alguns dos objectivos que devem nortear o ensino/aprendizagem da compreensão na leitura prendem-se, entre outros, com: i) o reconhecimento e identificação da informação solicitada; ii) a compreensão da informação explícita nos textos lidos; iii) a compreensão da informação não explícita no texto associada à capacidade de realizar inferências; iv) a selecção da informação de acordo com instruções dadas; v)a produção de textos com intenções comunicativas específicas.
Também as experiências de aprendizagem devem ser bastante diversificadas e adequadas aos alunos.
Para tentar solucionar os problemas e as lacunas detectados ao nível da compreensão na leitura, sugerem-se algumas situações de aprendizagem a propor aos alunos, que também valorizam a interacção leitura/escrita, como, por exemplo: implicar os alunos em situações de leitura com várias finalidades (ler para obter informação de carácter geral ou precisa, para seguir instruções, para aprender, por prazer, para praticar a leitura em voz alta, para verificar o que se compreendeu, entre outras); levar a cabo actividades que propiciem o desenvolvimento da competência lexical; promover actividades de articulação da leitura com a escrita como proceder à reescrita de textos.
Por outro lado, é também necessário envolver mais os alunos nas actividades realizadas em sala de aula, motivando-os e ajudando-os a serem autónomos na sua aprendizagem.
Esperamos que a escola “atribua ou transfira para o aluno a responsabilidade da construção do conhecimento, que ofereça aos alunos a possibilidade real de participar activamente na sua própria aprendizagem” (García e Pérez, 2001: 16).
Há também que reconhecer que as novas formas de comunicação (Internet, chats, fóruns, correio electrónico, sms, msn) requerem competências de leitura e escrita diferentes das que são praticadas em sala de aula. Deste modo, é necessário fazer adaptações na gestão do currículo, para que este se adeqúe à nova realidade sociocultural. Antes de mais, é necessário relacionar as actividades de leitura propostas aos alunos na escola com as suas vivências. Não podemos continuar a cingir-nos a actividades e textos que nada têm a ver com as suas experiências.
Como afirma Colomer (2003: 159),“A ideia de que saber ler (e escrever) representa a chave do acesso à cultura e ao conhecimento está profundamente enraizada na nossa sociedade.”
No entanto, o afastamento dos alunos em relação à leitura e à escrita é ainda uma realidade, apesar destes saberem que estas são fundamentais para o seu futuro.
Também é importante que o hábito de ler faça parte da vida dos docentes. Um docente que não tenha hábitos de leitura dificilmente motivará os seus alunos para a leitura. Além disso, poderá não ter consciência do valor da leitura para a obtenção do sucesso escolar e para o exercício de uma cidadania interventiva e crítica.
Outra grande questão prende-se com a falta de hábitos de leitura nas famílias. A prática de leitura tem que ser realizada com frequência dentro e fora da sala de aula, para que os alunos desenvolvam efectivamente hábitos de leitura.
Estamos a braços com uma grande contradição: se todos sabemos que é fundamental ler e escrever bem, como é que nos afastamos cada vez mais da leitura? Será que a leitura não tem sentido para nós?
Uma das medidas recentes para solucionar os problemas de iliteracia em questão partiu do Ministério da Educação e diz respeito à criação do Plano Nacional de Leitura, lançado no início de 2006, em articulação com o Ministério da Cultura e o Gabinete dos Assuntos Parlamentares. Esta iniciativa visa:
- promover a leitura, assumindo-a como factor de desenvolvimento individual e de progressão nacional;
- criar ambientes favoráveis à leitura;
- inventariar e valorizar práticas pedagógicas e outras actividades que estimulem o prazer de ler entre crianças, jovens e adultos;
- criar instrumentos que permitam definir metas cada vez mais precisas para o desenvolvimento da leitura;
- enriquecer as competências dos actores sociais, desenvolvendo a acção dos professores e de mediadores de leitura, informais e formais.
Assim, o Plano Nacional de Leitura vem complementar o Currículo Nacional do Ensino Básico, reforçando a importância dada à Língua Portuguesa e à leitura pelo sistema educativo português.
Um bom desempenho em compreensão na leitura, além de elevar os níveis de literacia, conduzirá o país a um patamar socio-económico mais favorável para todos os cidadãos, dotando-os de competências fundamentais para fazerem face ao avanço tecnológico e para exercerem plenamente a sua cidadania.
Depois de termos reflectido sobre o conceito de literacia, os problemas de iliteracia da população portuguesa e formas de os colmatar, urge, de igual forma, analisar o papel que o manual escolar de Língua Portuguesa deve desempenhar no processo de aquisição de competências ao nível da compreensão na leitura.

Importância do manual escolar de Língua Portuguesa na formação do leitor do século XXI

Pretende-se que a escola produza um discurso pedagógico-didáctico compreensível para os alunos. Este discurso deve estimular nos alunos a curiosidade, o espírito de análise de situações da vida e de descoberta, em vez de os ensinar a passivamente receberem um conhecimento já feito.
É igualmente importante que os manuais escolares cumpram estes requisitos.
Por tudo isto, na concepção de um manual escolar, deve ser dada atenção à linguagem, à concepção teórica do manual, à interdisciplinaridade, autonomia e criatividade, à concepção crítica da cidadania, à discriminação e ainda, aos conteúdos, às actividades, aos recursos didácticos, à avaliação. Deve, de igual forma, ser dada atenção ao modelo pedagógico-didáctico que o manual veicula.
Não podemos ignorar que, actualmente, se quer romper com a ideia de um currículo que se esgota nos conteúdos. Pretende-se que o currículo escolar se oriente para o desenvolvimento de competências. E, no quadro desta orientação, impõe-se repensar, quer a estrutura de muitos manuais escolares, quer o modo como são usados no desenvolvimento desse currículo, tendo em conta o facto de que estes aspectos estão intimamente ligados e se condicionam mutuamente.
O manual escolar tem sido encarado como um elemento regulador das práticas pedagógicas, quando deveria ser um instrumento orientador. Como afirma Brito (1999: 142), “sabemos que, algumas vezes, infelizmente não é o programa que determina a prática lectiva e conduz o professor a definir os objectivos do ensino, porque é o manual escolar, transformado num instrumento todo poderoso, que influencia e determina a prática pedagógica, às vezes, tomado por uns, como uma “bíblia”, cujo conteúdo é totalmente assumido como única verdade.”
Como já foi referido, a leitura ajuda a comunicar, a adquirir conhecimentos, a desenvolver a criatividade e está presente em todas as áreas curriculares. É essencial para as aprendizagens dos alunos e ajuda-os a desenvolverem-se como pessoas.
Por conseguinte, os manuais escolares – e, muito particularmente, os de Língua Portuguesa – devem constituir um contributo para ajudar a formar leitores competentes (Morais, 2006).
Assim sendo, importa reflectir sobre o papel a desempenhar pelos manuais escolares de Língua Portuguesa do Ensino Básico na aquisição e desenvolvimento de competências em compreensão na leitura, a fim de dotar os alunos de instrumentos indispensáveis à participação activa na sociedade em que se inserem.
Interessa também apresentar alguns dos princípios orientadores desta reflexão.
Antes de mais, é essencial caracterizar, nas suas linhas gerais, a forma como a compreensão na leitura é abordada nos manuais de Língua Portuguesa para os vários ciclos do Ensino Básico.
De seguida, é imprescindível comparar essas linhas gerais com os princípios definidos pela literatura da especialidade e as directrizes propostas pela política educativa portuguesa para este domínio.
Por fim, prevemos a elaboração de um documento contendo princípios que possam apoiar a elaboração de propostas didácticas efectivamente orientadas para o desenvolvimento de competências associadas à compreensão na leitura, no âmbito dos manuais escolares associados ao ensino/aprendizagem da língua portuguesa.
Para tornar possível a análise dos manuais escolares que constituem a amostra deste estudo, construímos uma grelha, a partir de uma aturada pesquisa e revisão de literatura da especialidade e das directrizes propostas pela política educativa portuguesa para o domínio em causa.
A partir desta grelha, é nosso objectivo determinar em que medida os manuais de Língua Portuguesa actualmente existentes vão ao encontro dos princípios que definem um ensino/aprendizagem da referida disciplina orientado para o desenvolvimento de competências em compreensão na leitura.
O manual escolar, como promotor da compreensão leitora, deve permitir criar uma atmosfera propícia à leitura, apresentando finalidades, objectivos a atingir e competências a desenvolver aquando da prática de leitura. Deve também disponibilizar aos alunos e ao professor todos os conteúdos do currículo e materiais de leitura diversificados que os permitam trabalhar, possibilitando a variação das experiências de leitura dos alunos, para os motivar para a mesma.
Deve, de igual forma, dar a conhecer aos alunos diferentes tipos de textos, diferentes tipos de linguagem de que eles se possam servir dentro e fora da escola. Devem, de igual forma, desenvolver nos alunos a capacidade de fazer inferências e de compreender os textos recorrendo à articulação com os conhecimentos prévios. Relativamente ao ensino/aprendizagem da leitura, os manuais devem tornar possível o confronto dos alunos com textos e obras motivantes, em situações reais para serem cativados.
As actividades em torno da leitura devem ser seleccionadas de acordo com dois aspectos fundamentais: a motivação e a activação de desenvolvimento cognitivo.
Só desta forma os manuais permitirão colmatar as dificuldades dos alunos ao nível da leitura, especificamente no que se refere à extracção de informação e posterior recuperação da mesma.
Deste modo, acreditamos que os manuais, enquanto orientadores das práticas, podem ter um papel muito importante na luta contra a ineficácia da Escola ao nível do ensino/aprendizagem da leitura e da escrita. Eles podem ser um factor de sucesso na motivação dos alunos face à leitura e escrita e no desenvolvimento de competências nestes dois domínios.
Acreditamos que o manual de Língua Portuguesa pode ser um bom auxiliar do professor na sensibilização para a leitura. Segundo Galveias (2004:74), “apesar do reconhecimento consensual de que ler é compreender, a Escola contradiz, com frequência, esta afirmação, ao basear o ensino da leitura numa série de actividades que se supõe serem destinadas a mostrar aos alunos como se lê, mas nas quais, paradoxalmente, nunca é prioritário o desejo de que compreendam o que diz o texto.” Também os manuais têm contribuída para esta situação.
Assim, é necessário que os manuais de Língua Portuguesa ajudem a alterar as práticas pedagógicas, tornando-as mais intencionais, coerentes e proficientes.
Ao professor é exigido que seja capaz de implementar práticas renovadoras, motivadoras, acompanhando e implementando o que a investigação no domínio da Educação em Línguas vai revelando. Aos manuais escolares é exigido que se tornem num instrumento ao serviços destas práticas.

Considerações finais

Actualmente, a sociedade exige que a escola, com a ajuda da família e do meio envolvente, forme cidadãos activos, conscientes, independentes e críticos e não alunos submissos.
É cada vez mais necessário dominar a leitura, para se poder viver em sociedade, para se ser bem aceite e para poder usufruir dos vários recursos que ela põe ao nosso dispor. Assim é muito importante o papel da disciplina de Língua Portuguesa no Currículo do Ensino Básico.
Ser leitor no século XXI exige do aluno motivação, vontade, esforço. A aprendizagem da leitura é para a vida inteira e vai muito para além da descodificação alfabética, prolongando-se por toda a escolarização.
Uma vez que a sociedade confere muita importância à leitura, a integração do indivíduo exige a aquisição e o desenvolvimento de competências relacionadas com a compreensão da informação escrita. Fica assim reforçada a importância da leitura como ferramenta de aprendizagem fundamental para todos, em todas as idades.
Deste modo, as práticas discursivas de leitura e também de escrita devem ser encaradas como fenómenos sociais que ultrapassam os limites da escola. Partimos do princípio de que o trabalho realizado por meio da leitura e da produção de textos é muito mais do que descodificação de signos linguísticos. Pelo contrário: é um processo de construção de significado e atribuição de sentidos.
De igual forma, concebe-se a leitura como uma actividade própria da disciplina de Língua Portuguesa e que ocupa um lugar e fulcral nesta. Esta concepção justifica-se pelo facto de a leitura permitir a concretização de uma pluralidade de funções acometidas à generalidade das acções educativas, particularmente no campo da formação pessoal e da socialização (Dionísio, 2000).
Por fim, apostamos na reflexão sobre o papel dos manuais enquanto ferramentas importantes na aquisição e o desenvolvimento de competências no domínio da comunicação.
Na verdade, os manuais de Língua Portuguesa do Ensino Básico podem ajudar a desenvolver metodologias de estudo e estratégias de raciocínio verbal importantes para a resolução de problemas do dia-a-dia do cidadão comum. Poderão, igualmente, permitir a descoberta da multiplicidade de dimensões da experiência humana, através do acesso ao património escrito que constitui um arquivo vivo da experiência cultural, científica e tecnológica da Humanidade. De forma mais restrita (e tendo em conta a problemática contemplada neste estudo), poderão contribuir para desenvolver nos alunos competências associadas à compreensão na leitura.

Bibliografia (não formatado)

BENAVENTE, Ana (coord.) – A Literacia em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. ISBN 972-31-0713-9.
BRITO, Ana. – A problemática da adopção dos manuais escolares. Critérios de reflexão. In Manuais escolares. Estatuto, funções e história. Actas do I Encontro Internacional sobre Manuais Escolares. Braga: Universidade do Minho, 1999. ISBN 972-8098-44-8. p139-148.
CASTRO, Rui Vieira – Acerca da Educação Linguística: Objectivos, conteúdos e contextos de realização. In Educação, Sociedade e Culturas, 8, 1997. P. 89-104.
COLOMER, Teresa – O ensino e aprendizagem da compreensão leitora. In Ensinar ou aprender a ler e a escrever?. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. ISBN: 8573076941. p.123-135
COLOMER, Teresa – O ensino e a aprendizagem da compreensão em leitura. In O valor das palavras. Falar, ler e escrever nas aulas. Porto: Edições ASA, 2003. ISBN: 972-41-3309-5. p. 159-178.
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GALVEIAS, Maria Fátima – Ler e escrever: desafios para a sociedade do conhecimento. Ensinar e aprender a ler no 1º Ciclo do Ensino Básico. Intercompreensão, 11, 2004. P.71-83.
GARCIA, Francisco. PÉREZ, Joaquín – Ensinar ou aprender a ler e escrever? Aspectos teóricos do processo de construção significativa, funcional e compartilhada do código escrito. Porto Alegre: Editora Artmed, 2001. ISBN: 8573076941
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MINISTÉRIO da EDUCAÇÃO – Organização curricular e programas – 1.º Ciclo do Ensino Básico. 2ª ed. Lisboa: Ministério da Educação/Departamento da Educação Básica, 1998.
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MORAIS, Elisabete de Fátima – Como ensinar a compreensão leitora no Primeiro Ciclo do Ensino Básico. Dissertação de Mestrado, Universidade de Aveiro, Aveiro, 2006.
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SEQUEIRA, Fátima, CASTRO, Rui. Vieira e SOUSA, Maria Lourdes – O ensino-aprendizagem do Português. Teoria e práticas. Minho: Universidade do Minho, 1989.
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Valadares, Lídia Maria – Transversalidade da Língua Portuguesa. Rio Tinto, Edições ASA, 2003.

terça-feira, 4 de março de 2008

Martins e Sá, 2008b

Referência bibliográfica:


MARTINS, M. E. e SÁ, C. M. (2008. Ler… para ser. A vertente transversal da compreensão na leitura em língua portuguesa. In Inês Cardoso, Esperançã Martins e Zilda Paiva (org.), Actas do Colóquio “Da investigação à prática. Interacções e debates.” Aveiro: Universidade de Aveiro/Departamento de Didáctica e Tecnologia Educativa/Centro de Investigação Didáctica e Tecnologia na Formação de Formadores, 2008 [publicado em CD-Rom]

Texto publicado:

Resumo

Deve ser objectivo dos processos de ensino/aprendizagem desenvolver competências em todos os domínios, visando a formação de cidadãos críticos e actuantes, capazes de resolver problemas através de um agir informado por valores, que se traduz na reconfiguração do saber ser. (Delors, 1996)
Neste contexto, o saber ler é uma competência exigida pela vida pessoal e social, já que a leitura é muito relevante para a compreensão da realidade.
O deficiente domínio da compreensão na leitura, que é evidenciado pela população portuguesa em geral e pelos estudantes, em particular, sendo uma competência que contribui decisivamente para moldar a nossa memória colectiva e para garantir o exercício de uma cidadania responsável e activa, é uma das preocupações centrais da política educativa portuguesa.
Urge ultrapassar abordagens da leitura obsoletas e trabalhar a capacidade de extrair informação relevante de textos escritos, para que a leitura seja um instrumento de aprendizagem transversal ao longo da vida e não se reduza a uma aprendizagem escolar. É fundamental que o leitor adquira velocidade e profundidade na compreensão de informação escrita e que desenvolva técnicas de consulta e estratégias de leitura diversificadas conforme os fins a que se destinam.
Urge, de igual forma, repensar o papel dos manuais escolares de Língua Portuguesa no desenvolvimento de competências transversais ao nível da compreensão na leitura.

1. Introdução
A compreensão na leitura ocupa um lugar determinante na construção do futuro dos indivíduos e das sociedades.
Em Portugal, como noutros países, tem-se procurado encontrar soluções para os graves problemas suscitados pelos elevados níveis de iliteracia da população em geral e dos estudantes em particular.
Tal esforço levou à tomada de consciência do facto de que a aquisição e desenvolvimento de competências transversais em compreensão na leitura tem de responder melhor às necessidades educativas dos aprendentes, assim como às exigências da sociedade. A formação a este nível deverá, nomeadamente, promover uma articulação mais estreita entre a Educação e a Sociedade, facilitando a transição para o mercado de trabalho.
Hoje em dia, não chega aprender a ler. É também essencial adquirir hábitos regulares de leitura que possibilitem o desenvolvimento de competências como compreender, interpretar, saber, contribuindo para uma participação consciente e crítica numa sociedade mais livre.
Importa, por isso, reflectir sobre que importância é dada à compreensão na leitura no contexto do ensino/aprendizagem da língua portuguesa.

2. Compreensão na leitura e ensino/aprendizagem da língua portuguesa
O desenvolvimento de competências em compreensão na leitura tem sido e continua a ser um dos grandes desafios no processo de ensino-aprendizagem. A baixa proficiência neste domínio é, recorrentemente, apontada como uma das variáveis determinantes do insucesso escolar (GAVE, 2001).
Apesar do papel central que lhe é atribuído no processo de ensino/aprendizagem em geral, é unanimemente admitido que o desenvolvimento de competências neste domínio está especificamente associado ao ensino/aprendizagem da língua portuguesa.
Por outro lado, temos de reconhecer que, mau grado todos os esforços desenvolvidos para dar cumprimento aos objectivos enunciados nos Programas de Língua Portuguesa relativamente a este domínio, o ensino/aprendizagem da compreensão-interpretação de textos continua a exigir uma acção estratégica estruturada, capaz de sustentar uma prática mais reflexiva e apoiada em modelos já testados pela investigação empírica e com resultados significativos.
São muitas as mais valias a adquirir pelos alunos ao nível da compreensão na leitura.
De acordo com Costa (1998), damos especial destaque: à aptidão para ler e compreender uma panóplia de tipos de textos; à aquisição de conhecimento que desenvolva a capacidade de reconhecer traços linguísticos, modelos organizacionais da informação, estilos característicos de diferentes tipos de textos; à capacidade de actuar em função da informação obtida através da leitura de vários tipos de textos; à leitura voluntária; à liberdade na escolha e avaliação de fontes de informação; ao controlo consciente sobre cada tarefa de leitura, sobre o processamento online, sobre o tipo de estratégias a utilizar.
A capacidade de extrair informação relevante de textos escritos é fundamental para que a leitura se converta num instrumento de aprendizagem e de desenvolvimento de outras competências e não fique reduzida a uma aprendizagem escolar, sem utilidade na vida activa.
Para tal, é necessário que o leitor adquira profundidade e velocidade na compreensão da informação escrita. É ainda essencial que saiba recorrer a técnicas de consulta e estratégias de leitura diversificadas conforme os fins a que se destinam.
É ainda imprescindível desenvolver hábitos de leitura nos sujeitos, tendo em conta o facto de esta permitir recolher informação útil e necessária, mas também o prazer associado a esta actividade.

3. Que leitor formamos? Que leitor devemos formar?
Segundo Vieira (2005), muitas práticas desenvolvidas com os alunos/leitores tornam-nos consumidores e não intérpretes, sujeitos dependentes treinados para seguir instruções, receptores acríticos de esquemas conceptuais, cuja missão consiste em procurar nos textos os sentidos que outros postulam, nomeadamente o professor ou autores de manuais.
As formas mais correntes de ensinar a leitura não parecem favorecer a adopção de estratégias individuais de compreensão textual, mas antes a imitação de estratégias alheias, sugeridas pelo professor e pelo manual, com base em fontes especializadas, particularmente no que se refere ao texto literário.
Em termos práticos, os alunos aprendem o necessário para serem capazes de realizar as actividades de compreensão na leitura que lhe são propostas no contexto escolar e, particularmente, no âmbito do ensino/aprendizagem da língua portuguesa.
Uma análise mesmo superficial dos manuais para o Ensino Básico e Secundário revela tanto isomorfismo de práticas entre os vários níveis de ensino (sendo salvaguardadas as devidas distâncias) que o aluno se pode tornar extremamente hábil em certas tarefas de leitura, frequentemente realizadas em contexto escolar, e ter sérios problemas de compreensão em situações de leitura habituais no contexto extra-escolar.
Antes de mais, enquanto leitores inseridos na realidade social, devemos vivenciar situações de leitura com finalidades e características diferenciadas. De facto, o acto de leitura pode assumir diversas configurações.
Logo, é importante ter presentes diferentes situações de leitura, no processo de ensino/aprendizagem da mesma.
Segundo Geraldi (1999), nas situações de leitura possíveis, podemos distinguir cinco grandes grupos:
i) a leitura de informação – é a situação de comunicação por excelência, em que uma mensagem é apreendida, a fim de completar uma lacuna no nosso conhecimento; corresponde à leitura informativa de jornais, revistas, instruções diversas, normas, etc.;
ii) a leitura de consulta – é utilizada todas as vezes que procuramos uma informação pontual num conjunto complexo de informações e aplica-se a dicionários, anuários, enciclopédias, catálogos etc.; muitas vezes, a leitura de informação (jornais, revistas, etc.) pode tomar este aspecto, desde que procuremos uma informação precisa, sem dar importância à restante informação disponibilizada;
iii) a leitura para a acção – é extremamente frequente, é mecânica, antecede, orienta ou modifica um comportamento ou acção; como a compreensão da mensagem se deve traduzir numa acção, trata-se de uma leitura rápida e selectiva; aplica-se a elementos como placas de sinalização, avisos, cartazes de rua, regras de um jogo, manuais técnicos de montagem, etc.;
iv) a leitura de reflexão – é uma das leituras mais densas, caracterizada por momentos de apreensão do conteúdo do texto e momentos de pausa para reflexão; nesta situação, o acto de ler está normalmente relacionado com o trabalho intelectual; aplica-se a textos como teses, ensaios, obras filosóficas, etc.;
v) a leitura de textos literários – é aquela em que o leitor, além de apreender o conteúdo veiculado pelo texto, privilegia o lado estético do texto; é, por exemplo, a leitura da poesia, cujo prazer do conteúdo está ligado também ao prazer da forma, à dimensão musical das palavras do texto.
Em síntese, é preciso ter presente o facto de que a leitura é sempre uma elaboração da informação, variando somente a intenção em que o leitor fundamenta cada acto de leitura.
Assim, é possível lidar com as diversas situações de leitura através de um trabalho pedagógico que pressuponha que a Escola é responsável pela promoção do gosto pela mesma e que contemple a multiplicidade de textos e de situações de leitura.
Reforçamos assim a importância de oferecer aos alunos oportunidades de trabalhar as diversas modalidades de leitura: não se formam bons leitores solicitando aos alunos que leiam só na sala de aula, ou apenas o livro didáctico, somente porque o professor pede.
A complexidade envolvida no processo de ensino/aprendizagem da leitura requer ainda do aprendiz de leitor motivação, esforço e consciencialização do que está a ser aprendido e exige que o seu ensino não se limite à descodificação alfabética e se prolongue por todo o percurso escolar. A aprendizagem da leitura é uma tarefa para a vida inteira.
Uma vez traçado o perfil do leitor inserido numa sociedade pós-moderna, passaremos à análise do papel que o manual escolar de Língua Portuguesa pode desempenhar na sua formação.
4. Papel do manual escolar de Língua Portuguesa no desenvolvimento de competências transversais em compreensão na leitura
Sendo a leitura um dos objectos privilegiados da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, importa perceber como, na Escola, se ensina a ler e através de que instrumentos.
Neste contexto, os manuais escolares são materiais de apoio pedagógico relevantes, pelas características que fazem deles o objecto central no processo de ensino-aprendizagem da compreensão na leitura.
Tendo em conta o disposto no Decreto-lei n.º 369/90 de 26 de Novembro, consideramos que o manual escolar é um recurso didáctico-pedagógico relevante (ainda que não exclusivo) no processo de ensino/aprendizagem, concebido por ano ou ciclo, de apoio ao trabalho realizado em sala de aula e ao trabalho autónomo do aluno, que visa contribuir para o desenvolvimento das competências referidas nos documentos oficiais em que se baseia a reforma do sistema educativo português em curso.
Desta forma, este deve constituir-se como uma ferramenta de promoção da leitura e de desenvolvimento de competências de compreensão escrita, através do contacto com uma grande variedade de textos e da vivência de situações de leitura diferenciadas, de modo a promover o desenvolvimento intelectual, social e afectivo do aluno e a dotá-lo de instrumentos indispensáveis à participação activa na sociedade em que se insere. Temos aqui um grande contributo para a formação de cidadãos competentes, interventivos e críticos.
A partir de uma leitura atenta da literatura da especialidade, estamos em condições de afirmar que o manual de Língua Portuguesa continua a não privilegiar práticas de compreensão dos textos conducentes a leituras plurais, capazes de formar sujeitos-leitores que se caracterizem por possuírem competências de leitura que ultrapassam a mera descodificação dos textos e que participem activamente na construção dos sentidos desses mesmos textos.
Na maioria dos manuais de Língua Portuguesa para o Ensino Básico, a leitura apresenta características pouco compatíveis com os objectivos que este domínio parece visar, no Currículo Nacional para o Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001).
Estudos realizados sobre manuais de Língua Portuguesa (cf., por exemplo: Castro, Rodrigues, Silva & Sousa (1999); Dionísio, 2000; Vieira, 2005).) apontam, genericamente, para as seguintes características:
i) leituras e leitores “formatados” – o manual define a interpretação que deve ser feita, adoptando-a como a única válida e a ser tida em conta na leitura efectuada;
ii) sentidos “prontos-a-usar” – o autor do manual, quer ao descrever o que observa, quer ao tirar conclusões sobre o que leu, quer ainda ao avaliar o texto, delineia o seu envolvimento com o mesmo, dando-o a ler aos alunos à semelhança da leitura já por si realizada;
iii) leituras impostas e feitas sob controlo – decorrentes das características anteriores; face aos textos apresentados pelo manual, o leitor vê-se confrontado com limitações várias à sua intervenção sobre os mesmos e sente-se coagido a responder dentro de um determinado quadro, já definido pelas actividades que lhe são apresentadas;
iv) redução das operações de leitura à identificação e à confirmação – o leitor está perante um contexto de movimentos de leitura muito pouco diversificado;
v) predomínio de “textos transparentes” – textos esses que claramente evidenciam os sentidos que o leitor deles deve extrair, logo, que não possibilitam leituras várias, exercendo assim um forte controlo sobre a actividade interpretativa do aluno, que vê desvalorizado o seu papel como leitor.
Desta forma, os manuais de Língua Portuguesa têm vindo a apresentar-se como uma entidade pedagógica, que tende a anular qualquer leitura pessoal dos textos propostos, impondo verdades tidas como universais e indiscutíveis. Nesta perspectiva, o manual não só anula a autonomia do leitor no acto interpretativo, como também vinca claramente as estratégias pedagógicas a utilizar para o estudo desses mesmos textos, procedimentos que se tornam ainda mais evidentes nos textos pertencentes à esfera literária.
Tendo presente o Currículo Nacional do Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001), todas as características agora apontadas aos manuais devem ser sujeitas a uma profunda discussão, sendo fundamental interpelá-los quanto à forma como vão sendo construídos os degraus que sustentam saberes e competências.
Temos também de superar a abordagem centrada na mera transmissão de conteúdos ainda prevalecente nos manuais e nas práticas pedagógicas, focalizando o processo de ensino/aprendizagem no desenvolvimento de competências.
O que, frequentemente, chega aos professores e aos alunos, sob a forma de manuais de Língua Portuguesa, são imagens pálidas, simplificadas e, por vezes, enviesadas, porque interpretações subjectivas, de professores ou de pequenos grupos de professores, dos princípios e das opções didácticas determinantes do processo de ensino/aprendizagem.
Por outro lado, segundo Cabral (2005), professores e alunos assumem, face a estes, uma posição acrítica, de dependência em relação ao manual, que já tomou por eles a maioria das decisões didácticas, ao nível da selecção e da sequencialização de conteúdos e de actividades e do modo como as competências vão ser trabalhadas na sala de aula.
Neste contexto, somos confrontados com várias questões e outras tantas dúvidas. Estarão os manuais escolares de Língua Portuguesa ao serviço de uma crescente consciencialização da importância do desenvolvimento de competências de compreensão na leitura? Facilitam ou não a operacionalização da transversalidade das competências do domínio referido? Quais os seus contributos para uma educação escolar de sucesso?
No estudo que dá corpo a este texto, centrar-nos-emos na análise de manuais de Língua Portuguesa dos vários ciclos do Ensino Básico, a partir de uma grelha elaborada para o efeito, tendo em conta os princípios definidos pela literatura da especialidade e as directrizes propostas pela política educativa portuguesa para este domínio.
A análise de manuais escolares que faremos possibilitará a identificação de alguns dos princípios que estruturam o processo de ensino/aprendizagem, particularmente no que diz respeito ao desenvolvimento de competências de compreensão da leitura.
Das muitas razões que poderiam conduzir à escolha do tema de trabalho atrás mencionado destacam-se as seguintes:
i) a consciência da transversalidade da língua portuguesa e do contributo das competências adquiridas através do seu ensino/aprendizagem para o sucesso do aluno a nível escolar e social;
ii) a necessidade de promover um ensino/aprendizagem da língua portuguesa que conduza efectivamente ao desenvolvimento de competências transversais, nomeadamente em compreensão na leitura;
iii) a importância do papel que os manuais escolares em que se apoia o processo de ensino/aprendizagem da língua portuguesa podem vir a ter na operacionalização dessa transversalidade.
Orientadas pelos objectivos i) caracterizar o perfil de leitor a desenvolver, tendo em conta as actuais necessidades em termos de sucesso escolar e de integração social, ii) caracterizar a forma como a compreensão na leitura é abordada nos manuais de Língua Portuguesa do Ensino Básico, iii) comparar essa abordagem com os princípios definidos pela literatura da especialidade e as directrizes propostas pela política educativa portuguesa para este domínio e, por fim, iv) contribuir para a definição de princípios que promovam a elaboração de manuais mais adequados ao desenvolvimento de competências associadas à compreensão na leitura, procuraremos, numa altura em que a população portuguesa ainda se encontra a braços com graves problemas de iliteracia, contribuir para a produção de manuais mais adequados à formação do leitor que a sociedade pós-moderna exige.
Em síntese, somos de opinião (Martins e Sá, 2007) de que o manual é um auxiliar precioso no apoio à leccionação da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa e à promoção de aprendizagens que conduzam ao desenvolvimento de competências de compreensão na leitura nos alunos.
Por conseguinte, deve haver, por parte dos autores, um cuidado especial na sua concepção e, por parte dos professores, um cuidado especial na sua selecção, de modo a que ele se constitua, efectivamente, como um bom instrumento de trabalho e contribua para a qualidade do ensino e da aprendizagem.

5 Considerações finais
Propomo-nos reflectir sobre os grandes problemas que hoje se colocam ao ensino/aprendizagem da língua portuguesa em contexto escolar, sem esquecer as orientações políticas que o condicionam.
Merece destaque o deficiente domínio da compreensão na leitura que é evidenciado pela população, em geral, e pelos estudantes, em particular, gerador de problemas de iliteracia que condicionam decisivamente a modelação da nossa memória colectiva e o exercício de uma cidadania responsável e activa.
De facto, a leitura ajuda a adquirir conhecimentos, a comunicar, a desenvolver a criatividade e está presente em todas as áreas curriculares e faz parte da vida em sociedade. Neste contexto, não restringimos o acto de ler aos limites da Escola.
Esta deve promover práticas de leitura que façam do aluno um indivíduo que busque a organização de uma sociedade mais democrática e justa, sem perder de vista o prazer de ler.
Dado o lugar central que ocupam no processo de ensino/aprendizagem, os manuais escolares – e, muito particularmente, os de Língua Portuguesa – devem contribuir para formar leitores competentes (cf. Morais, 2006).
Somos de opinião de que os manuais não têm só que se adaptar às novas disposições curriculares, mas também aos contextos sociais em que a aprendizagem ganha sentido. Estes conceitos pressupõem a formação de cidadãos activos, responsáveis, autónomos e críticos e não de alunos dependentes, a quem o manual treinou para a obediência à ordem: responda, preencha, complete, registe, etc.

6 Bibliografia
Cabral, M. (2005). Como analisar manuais escolares. Lisboa: Texto Editores.
Castro, R. V., Rodrigues, A., Silva, J. L., Sousa. M. L. D. (orgs.) (1999). Manuais escolares: estatuto, funções, história. Braga: Universidade do Minho.
Costa, M. A. (1998). Saber ler e saber ensinar a ler do Básico ao Secundário. In R. V. Castro & M. L. Sousa (orgs.), Linguística e Educação. (pp. 69-82). Lisboa: Edições Colibri/Associação Portuguesa de Linguística.
Delors, J. (1996). Educação: um tesouro a descobrir. Rio Tinto: Edições ASA.
Dionísio, M. L. (2000). A construção escolar de comunidades de leitores. Coimbra: Livraria Almedina.
GAVE (2001). Pisa 2003: Programme for International Student Assessment. Lisboa: Ministério da Educação/Gabinete de Avaliação Educacional.
Geraldi, J. W. (1999). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática.
Martins, M. E. & Sá, C. M. (2007). O contributo dos manuais de Língua Portuguesa para o desenvolvimento da compreensão leitora numa perspectiva de interdisciplinaridade. [Texto a ser publicado nas Actas do IX Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, Funchal, Abril de 2007].
Martins, M. E. & Sá, C. M. (2007). Importância da compreensão na leitura para o exercício de uma cidadania responsável e activa. [Texto a ser publicado nas Actas do Congresso Internacional de Educação Básica, Porto, Setembro de 2007].
Martins, M. E. & Sá, C. M. (2007). Os manuais de Língua Portuguesa e o desenvolvimento de competências transversais em compreensão na leitura. In A. Barca, M. Peralbo, B. Duarte da Silva & L. Almeida (Eds.), Libro de Actas do Congreso Internacional Galego-Portugués de Psicopedagoxía. A.Coruña/Universidade da Coruña: Número extraordinário da Revista Galego-Portuguesa de Psicoloxía e Educación.
Ministério da Educação (2001) Currículo Nacional do Ensino Básico. Competências essenciais. Lisboa: Departamento da Educação Básica.
Morais, E. F. (2006). Como ensinar a compreensão leitora no Primeiro Ciclo do Ensino Básico. Dissertação de Mestrado, Universidade de Aveiro, Aveiro.
Vieira, A. S. S. (2005). O desenvolvimento da competência de leitura em manuais escolares de língua portuguesa. Braga: Universidade do Minho.