segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Parecer sobre os novos programas de Língua Portuguesa para o Ensino Básico

A minha reflexão sobre os documentos publicados pelo Ministério da Educação, que definiram os actuais contornos do sistema educativo português (feita no âmbito da investigação em Educação em Línguas e Didáctica do Português) e o meu conhecimento do terreno (derivado de uma larga experiência de formação – graduada e pós-graduada – de professores envolvidos na leccionação da língua portuguesa em todos os níveis de ensino e de supervisão da prática pedagógica no 3º Ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário) levam-me a emitir um parecer sobre a proposta de programas de Língua Portuguesa para o Ensino Básico, aberta a discussão pública no site da DGIDC (Direcção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular).
Sou do parecer que o texto em discussão consagra princípios essenciais referidos nas orientações curriculares que têm vindo a ser formuladas para o Ensino Básico desde o início do séc. XXI e que respeitam conceitos definidos por organizações internacionais com responsabilidades na área da Educação e por investigadores de renome neste domínio:
- papel fundamental da língua portuguesa na formação global do indivíduo (tendo em conta competências, saberes, atitudes e valores);
- valorização da transversalidade da língua portuguesa, a operacionalizar na área curricular disciplinar do mesmo nome, responsável pelo processo de ensino/aprendizagem a ela associado, e nas restantes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares;
- ligação estrutural dos três ciclos em que se divide o Ensino Básico, que, de momento, corresponde à escolaridade obrigatória em Portugal;
- consideração do ciclo como unidade de base do desenho curricular, embora ressalvando o peso do conceito de anualidade na organização do sistema educativo português;
- promoção da gestão flexível do currículo tendo em vista metas a atingir no final de cada ciclo integrado no Ensino Básico;
- desenvolvimento do currículo em espiral, consagrando os princípios da progressão e da continuidade;
- valorização da abordagem de diversos tipos de discurso, oral e escrito, princípio mais especificamente relacionado com o ensino/aprendizagem da língua portuguesa;
- abordagem do funcionamento da língua em associação com o tratamento de diversos tipos e géneros de textos, em compreensão e produção, evitando a tentação de cair numa visão muito normativa deste aspecto do domínio da língua portuguesa.
Apesar desta leitura favorável dos princípios básicos consignados no documento posto a discussão, há alguns aspectos da sua concretização, igualmente referida nesse documento, que me parecem merecer uma maior atenção.
Refiro-me concretamente:
- à necessidade de dar mais ênfase à abordagem da transversalidade da língua portuguesa em associação com as restantes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, apresentando mais propostas pedagógico-didácticas que possam constituir a base para a sua operacionalização e aproveitando resultados de investigação centrada nesta problemática;
- ao interesse em apostar de forma mais clara na exploração de textos não-literários, essenciais a um bom domínio da comunicação oral e escrita, sem prejudicar o justificado interesse pelo texto literário.
Por outro lado, parece-me importante rever algumas concepções essenciais para a elaboração deste documento.
Não seria conveniente alargar um pouco a concepção de socialização presente neste documento? A referida na sua versão actual parece pouco flexível, definindo patamares muito rígidos para cada ciclo integrado no Ensino Básico (cf. p. 35).
Do mesmo modo, não seria aconselhável rever a concepção de desenvolvimento da cidadania nele apresentada? Parece muito rígida e também demasiado escolar, centrando-o excessivamente na passagem por um dado ciclo de ensino e fazendo pouca referência a influências externas ao contexto escolar, que este possa valorizar e rentabilizar (cf. p. 37).
Não seria importante flexibilizar um pouco mais as fronteiras entre os vários domínios definidos no âmbito da língua portuguesa? A actual parece muito restrita (com a escrita a interagir com os outros domínios, não se fazendo referência ao movimento inverso) e também demasiado escolar (esquecendo o contributo que as experiências de oralidade, leitura e escrita associadas às vivências extra-escolares dos alunos podem dar à aprendizagens em contexto escolar) (cf. p. 36).
Que critérios permitem distinguir texto objectivo/texto subjectivo e texto simples/texto complexo? Será a oposição texto literário/texto não-literário? É esta oposição que justifica que se recomende o contacto dos alunos com o texto literário apenas a partir do segundo momento do 1º Ciclo do Ensino Básico? Não podemos esquecer o facto de que, mesmo antes de darem início à escolaridade formal, as crianças já têm a possibilidade de contactar com o texto literário, associado à literatura infanto-juvenil (em família, no jardim de infância e na educação pré-escolar). Curiosamente, o conceito de complexidade textual só surge associado ao texto escrito, o que sugere a ideia de uma associação implícita entre este e o texto literário canónico, excluindo o texto oral – literário e não-literário – e o texto escrito não-literário (cf. p. 38).
Não seria aconselhável alargar o conceito de hábitos de leitura e associá-lo a outros textos que não os literários e a todos os níveis de ensino? Neste documento, parece vigorar uma concepção muito escolar dos hábitos de leitura, atribuindo ao texto literário o papel de meta complexa a atingir (cf. p. 35).
Espero que estas reflexões possam contribuir para a melhoria do documento final, adaptando-o ainda mais à realidade das escolas portuguesas e levando-o a contribuir de forma mais evidente para o sucesso escolar dos alunos e a sua formação para o exercício de uma cidadania activa e crítica.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Comentários sobre os novos programas de Língua Portuguesa para o Ensino Básico

Aspectos inovadores:
1) Valorização da abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa
• referência ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura a partir da realização de actividades no âmbito de outras áreas curriculares (por exemplo, resolução de problemas, actividades experimentais) já no 1º CEB;
• referência à resolução de problemas colocados pela leitura de enunciados (por exemplo, testes de diferentes disciplinas do currículo) a partir do 2º CEB;
• referência ao estudo de léxico contextualizado, nomeadamente pelas diferentes áreas curriculares, a partir do 2º CEB;
• referência ao apoio a dar aos alunos na selecção de informação adequada às suas necessidades de trabalho, na interpretação crítica da informação pesquisada e na sua mobilização de acordo com princípios éticos do trabalho intelectual (normas para citação, identificação das fontes utilizadas, produção de bibliografias…) no 3º CEB;
• referência ao trabalho em projectos;
• referência ao papel da escrita na clarificação do pensamento, na apropriação do conhecimento e no planeamento e organização de projectos de trabalho no 3º CEB;
• referência a actividades que promovem a interacção leitura-escrita (revisão dos textos produzidos, reformulação e aperfeiçoamento textual) nos três ciclos do Ensino Básico.

2) Valorização das aprendizagens formais e informais anteriores desde o 1º CEB.

3) Referência à necessidade de trabalhar de forma integrada as competências específicas da Língua Portuguesa (compreensão e expressão oral, compreensão e expressão escrita) e em articulação com a abordagem do Conhecimento Explícito da Língua já no 1º CEB.

4) Referência a fundamentos teóricos actualizados em termos de abordagem didáctica da compreensão na leitura (por exemplo, trabalho em pré-leitura, leitura e pós-leitura) e da produção escrita (operações de planificação, textualização, revisão e reescrita/melhoria dos textos produzidos) desde o 1º CEB.

5) Aposta na renovação do questionário oral e escrito através do recurso a diversos tipos de perguntas (para mobilizar conhecimento prévio, dizer sim ou não, fazer inferências, pesquisar no texto ou noutros textos, …).

6) Aposta em experiências de leitura intelectual e afectivamente estimulantes proporcionadas pelos professores aos alunos tendo em conta as suas características pessoais.

7) Aposta em textos normalmente marginalizados em contexto escolar (por exemplo, conto fantástico, policial, de ficção científica).

8) Aposta na exploração em compreensão na leitura dos textos escritos produzidos pelos próprios alunos.

9) Aposta na (re)criação de textos literários (implicando a escrita a partir de modelos dos diferentes géneros) e na apreciação de recriações desses mesmos textos noutras linguagens (filmes, séries de TV, representações teatrais, pintura, ilustrações, publicidade, etc.) e ainda na valorização de uma obra enquanto objecto simbólico, no plano do imaginário individual e colectivo.

10) Articulação da produção escrita com diversas formas de expressão estética.

11) Integração da avaliação nos processos de compreensão na leitura e de produção escrita.

12) Aposta na partilha de experiências de leitura e na criação de circuitos de comunicação escrita.

13) Integração das TIC no ensino/aprendizagem da língua portuguesa como recursos didácticos, mas também como potenciais geradoras de novas formas de comunicar e de gerir a comunicação (oral e escrita)

Aspectos a rever:

1) A coluna intitulada Notas precisava de ser reorganizada; no seu formato actual corresponde a um acervo de reflexões misturando actividades e recursos didácticos, sem orientar para grandes estratégias no âmbito das quais os professores dos diversos ciclos que fazem parte do Ensino Básico possam conceber actividades a desenvolver com os seus alunos.
Cf., por exemplo, documento meu sobre estratégias didácticas de abordagem da compreensão na leitura, construído a partir de leituras feitas, práticas e reflexões pessoais.

2) Seria importante clarificar as referências a géneros e tipos de textos:
• os textos orais não são abrangidos por nenhuma tipologia textual?
• a que textos se referem os tipos textuais (só aos textos não literários? abrangem também os literários?)
• que relação existe entre tipos de texto e géneros textuais? (afinal há textos de tipo narrativo e um género narrativo)
• os géneros textuais só se aplicam aos textos literários?
• há um texto poético? (o que fazer dos textos narrativos e dramáticos, entre outros, escritos em verso?).

3) Há algumas concepções que precisam de ser revistas por serem um tanto limitativas.
• o adjectivo como único recurso para a caracterização de cenas, objectos, personagens, …;
• redução da estrutura da narrativa a situação inicial, desenvolvimento e desfecho (coexistindo com outras descrições mais relacionadas com estudos feitos no âmbito da Psicologia Cognitiva, da Psicolinguística e da Narratologia);
• uma certa insistência na abordagem do texto narrativo no 1º CEB (quando as crianças contactam com outros tipos de textos e os usam , na escola e fora dela);
• algum esquecimento relativamente à abordagem da oralidade formal no 1º CEB;
• desvalorização da dimensão recreativa e lúdica da compreensão oral no 2º CEB;
• realce de certas características textuais como sendo exclusivas do texto literário, quando também podemos encontrá-las em textos paraliterários e não literários (por exemplo, representação de mundos imaginários, utilização estética, retórica e lúdica dos recursos da linguagem verbal, pluralidade e diversidade de “vozes”) e de outras como estando mais presentes neste (promoção do diálogo com a experiência pessoal do aluno, alargamento da sua experiência e do seu conhecimento do mundo e dos outros);
• a banda desenhada como um formato textual;
• caracterização do texto oral como sendo mais “pobre” que o texto escrito (vocabulário menos rico e apurado em relação ao discurso escrito, emprego de marcadores discursivos estereotipados que funcionam como bordões, sintaxe pouco estruturada, formalidade mais débil e descuidada que no texto escrito);
• associação da complexificação intelectual ao acesso à cultura “culta” e, em particular, à literária, referidas como distintivas entre o 1º CEB e o 2º CEB (será que as crianças não conhecem o texto literário nem a cultura do seu país, pelo menos?);
• exclusão da referência à imagem na constituição do corpus textual para o 3º CEB (será que esta só pode ser usada com crianças e pré-adolescentes? será que a leitura de imagens é assim tão simples?).

4) Outras precisam de ser aprofundadas:
• como se mede a complexidade de um texto? se for literário é complexo e se for não literário é simples? mede-se em função da sua extensão? da linguagem usada? do tema abordado? da forma de o tratar?
• como identificar bons modelos na dicção de textos poéticos?
• como identificar autores consagrados e com reconhecida capacidade de reescrita e composição para seleccionar as adaptações de textos a estudar com os alunos?

5) Algumas propostas parecem demasiado exigentes para o público a que se referem:
- no 1º/2º Anos de Escolaridade, em textos ouvidos,
• pedir a identificação do tema central e do sentido global de textos ouvido e ainda identificar ideias-chave, organizar a informação e procurar informação complementar com a ajuda do professor,
• levar a criança a respeitar a sequencialidade lógica no reconto de factos ou a elaborar esquemas e tópicos para exprimir as ideias que recolheu;
Estudos relativos ao desenvolvimento cognitivo das crianças revelam alguma dificuldade na realização destas operações. No entanto, é aceitável que, numa perspectiva vigotskiana (tendo em conta o conceito de “zona de desenvolvimento próximo” se façam actividades que vão explorando as capacidades que as crianças revelam neste domínio.
- no 1º/2º Anos de Escolaridade, em textos lidos, distinguir letra, palavra, frase e texto (como se define um texto para uma criança, quando este pode ter várias páginas ou, eventualmente, uma só palavra?);
- no 1º/2º Anos de Escolaridade, em textos escritos pelas crianças,
• aplicar as principais regras de utilização dos sinais de pontuação,
Cf. os estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, que se referem explicitamente às dificuldades das crianças a frequentar os primeiros anos do 1º CEB neste domínio.
• identificar erros, acrescentar, apagar e substituir informação e reordenar o texto (com o apoio do professor);
- no 1º/2º Anos de Escolaridade, no que se refere ao Conhecimento Explícito da Língua,
• distinguir sinónimos e antónimos,
• saber exprimir o tempo (anterior simultâneo, posterior).
Cf. Michel Fayol sobre a questão da compreensão de expressão do tempo nas crianças.
- no 3º/4º Anos de Escolaridade, em textos lidos,
• sublinhar, tomar notas e esquematizar,
• distinguir relações intra-textuais (parte-todo, causa-efeito, facto-opinião),
• transformar, parcial ou totalmente, textos lidos em quadros-síntese, mapas conceptuais, esquemas,
• fazer resumos escritos;
- no 3º/4º Anos de Escolaridade, no que se refere ao Conhecimento Explícito da Língua, aplicar o conhecimento da flexão verbal para assegurar a coesão temporal nos textos produzidos;
- no 2º CEB, em relação a textos ouvidos,
• esquematizar relações,
• distinguir variações no modo de articulação (entre vogais e consoantes) e no ponto de articulação (entre consoantes);
- no 2º CEB, em relação a textos lidos,
• sublinhar, tomar notas, esquematizar, sintetizar,
• demarcar diferentes unidades de forma-sentido,
• manifestar-se em relação a aspectos da linguagem que conferem a um texto qualidade literária;
- no 2º CEB, em relação ao Conhecimento Explícito da Língua,
• identificar propriedades do português padrão,
• reconhecer a relevância dos processos de formação irregular de palavras na qualidade literária dos textos;
- no 3º CEB, em relação aos textos escritos,
• reconhecer e reflectir sobre os valores culturais, estéticos, éticos, políticos e religiosos que perpassam nos textos,
• comparar ideias e valores expressos em diferentes textos de autores contemporâneos com os textos de outras épocas e culturas,
• estudar a alusão e a paródia,
• reconhecer e reflectir sobre as relações que as obras literárias estabelecem com o contexto social, histórico e cultural no qual foram escritas;
- no 3º CEB, em relação ao Conhecimento Explícito da Língua, distinguir português antigo, português clássico e português contemporâneo.