sexta-feira, 13 de junho de 2008

Referência bibliográfica:


Bartolomeu, R. e SÁ, C. M. (2008). A operacionalização da transversalidade da língua portuguesa no âmbito da Gestão Flexível do Currículo.
Palavras, 33, pp. 15-25

Texto publicado:

1. Introdução
Numa sociedade em permanente evolução, onde o indivíduo é constantemente bombardeado por todo o tipo de informação, é premente que os nossos jovens possam compreender essa informação que todos os dias os rodeia e que é vital para a sua integração sócio-profissional na comunidade.
Estará a escola preparada para assumir este novo papel, para fornecer aos alunos “armas” que garantam o seu sucesso profissional e formação pessoal?
Perante o cenário de insucesso escolar que assombra o nosso país, a resposta é evidente. Assim, é imperativo reflectir sobre esta situação, questionando-nos sobre o seu porquê.
As lacunas no domínio da língua portuguesa agravam a situação, não permitindo que o aluno faça aprendizagens essenciais para o seu sucesso.
Sendo conhecedoras das profundas dificuldades dos alunos, nomeadamente no que diz respeito à compreensão na leitura, e tendo em conta o cenário de iliteracia vivido em Portugal actualmente, concluímos que muitas destas dificuldades advêm da falta de hábitos de leitura e do desconhecimento de métodos de trabalho a ela associados.
Em contexto escolar, a responsabilidade recai muitas vezes sobre o professor de Português. Mas, não será esta uma responsabilidade de todos os professores? Não são estas competências transversais a todas as disciplinas? Não deveriam todos os professores contribuir para a sua aquisição e desenvolvimento, transformando-as num utensílio precioso, na vida escolar e extra-escolar?
O Projecto da Gestão Flexível do Currículo constitui a possibilidade dada a cada escola de organizar e gerir autonomamente todo o processo de ensino/aprendizagem, adoptando um currículo contextualizado, adaptado aos alunos em questão.
Assim sendo, colmatar as dificuldades dos alunos no domínio da língua portuguesa, nomeadamente no que diz respeito à compreensão na leitura, deveria ser um dos objectivos dos Projectos Curriculares de Turma.
Por conseguinte, propusemo-nos desenvolver um estudo subordinado ao tema Transversalidade, compreensão na leitura e Gestão Flexível do Currículo (Carvalho, 2006).
O nosso estudo empírico foi norteado pelos seguintes objectivos de investigação: i) analisar a presença da transversalidade da compreensão na leitura em documentos associados à gestão flexível do currículo (Projecto Curricular de Turma), tendo em conta as formas de operacionalização dessa transversalidade nas várias disciplinas do currículo dos alunos; ii) a partir desta análise, traçar linhas de actuação que pudessem contribuir para uma gestão flexível do currículo promotora da transversalidade da compreensão na leitura.

2. A transversalidade da língua portuguesa
2.1. Seu papel na reconfiguração do sistema educativo português
A Reorganização Curricular do Ensino Básico, denominada Projecto da Gestão Flexível do Currículo e regulamentada pelo Decreto-Lei nº 6/2001, surgiu em consequência das importantes mudanças que se têm verificado em todos os sectores da sociedade portuguesa e tenta dar resposta a estas modificações, formando indivíduos que se integrem no meio sócio-profissional, de uma forma adequada e adaptada às exigências de uma sociedade competitiva, e que sejam portadores de “um conjunto de aprendizagens e competências a desenvolver (…) ao longo do ensino básico” (Decreto-Lei nº 6/2001 – Capítulo I, Artigo 2º, ponto 1).
Neste contexto, a disciplina de Língua Portuguesa é considerada como uma das nucleares, verificando-se muitas vezes que as retenções dos alunos se justificam devido às dificuldades apresentadas no domínio da língua portuguesa. Esta surge como uma disciplina universal, transdisciplinar, de discurso transversal a todas as áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, considerando-se que o uso da língua portuguesa deve ser promovido “de forma adequada às situações de comunicação criadas nas diversas áreas do saber, numa construção pessoal de conhecimento.” (Ministério da Educação, 2001:19).
Segundo Rui Vieira de Castro e Maria de Lourdes Dionísio Sousa (1998), numa perspectiva histórica, a transversalidade da língua portuguesa está presente nas várias tentativas de reforma operadas no sistema educativo português, sobretudo a partir de 1986. A Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei nº46/86 de 14 de Outubro), assim como o Decreto-Lei nº 286/89 de 29 de Agosto, são documentos que consideram todos os espaços curriculares como um lugar de desenvolvimento sistemático e orientado de competências no domínio da língua portuguesa, definindo-a como uma “formação transdisciplinar”.
Também na reforma em curso, as competências específicas definidas para a disciplina de Língua Portuguesa, no âmbito do Currículo Nacional do Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001), seguem as propostas do final da década de 80 e da década de 90 do século passado, salientando que a meta do currículo de Língua Portuguesa na educação básica é desenvolver nos jovens um conhecimento da língua que lhes permita atingir competências essenciais para a sua evolução no processo de ensino/aprendizagem e para a sua futura integração sócio-profissional.
A importância destas competências é ainda sublinhada por Inês Sim-Sim, Inês Duarte e Maria José Ferraz (1997), quando afirmam que o ensino/aprendizagem da língua portuguesa, durante a educação básica, deve promover o desenvolvimento de cinco competências, que consideram como nucleares: Compreensão do oral, Leitura, Expressão oral, Expressão escrita e Conhecimento Explícito. Segundo as autoras, estas competências devem ser desenvolvidas não só na área curricular de Língua Portuguesa, mas também por todas as outras áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, pois são fulcrais para a formação científica, social e pessoal do aluno e dão “a todas as crianças e jovens que a frequentam [a escola] idênticas oportunidades de desenvolverem as suas capacidades.” (Sim-Sim et al., 1997: 33).
No entanto, o que se verifica, na realidade, é alguma dificuldade em operacionalizar a transversalidade da língua portuguesa, o que é confirmado pelo estudo levado a cabo por Rómulo Neves, no âmbito da sua dissertação de mestrado (Neves, 2004). De acordo com este estudo (cf. Neves e Sá, 2005), as dificuldades de operacionalização da transversalidade da língua portuguesa reveladas pelos professores de Português derivam de vários factores, dentre os quais se destacam a carência de formação e a resistência dos professores ao trabalho colaborativo. Outros factores invocados são a mobilidade frequente dos professores, a sobrecarga horária com que são muitas vezes confrontados, o número excessivo de alunos por turma, a quantidade de conteúdos programáticos a leccionar, a ausência de controlo das práticas lectivas por organismos competentes e a fuga dos professores das restantes áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares) à responsabilidade em tudo o que se refere à língua portuguesa.
2.2. Sua importância no currículo do Ensino Básico
No que diz respeito à transversalidade da língua portuguesa, no âmbito específico do currículo do Ensino Básico, deveriam ser tidas em conta duas realidades: i) a consciência de que o processo de ensino/aprendizagem da língua portuguesa desenvolve nos alunos competências que eles poderão pôr ao serviço de aprendizagens a fazer noutras áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares), que serão essenciais à sua formação geral; ii) e o facto de todas as outras áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares) poderem contribuir para um melhor domínio da língua portuguesa, pois ela é o instrumento de aprendizagem em todo o currículo (ou seja, é veículo de comunicação entre professores e alunos e um espaço privilegiado para o desenvolvimento das competências cognitivas, linguísticas e comunicativas dos alunos).
Relativamente à primeira das realidades, e retomando a ideia acima referida, a disciplina de Língua Portuguesa é aquela que apresenta mais conteúdos transversais importantes para o desenvolvimento das competências específicas das restantes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares e, consequentemente, para o sucesso escolar do aluno.
Segundo Meireles (2000:47), os domínios em torno dos quais se organiza o currículo escolar da Língua Portuguesa (Ouvir/Falar, Ler, Escrever e Funcionamento da Língua), quando bem sedimentados, conduzem a aprendizagens no âmbito das outras áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, associadas ao desenvolvimento das seguintes competências: ler e seguir instruções, tomar notas a partir das explicações do docente, realizar fichas de trabalho, elaborar um resumo, responder a um questionário, organizar o caderno diário ou realizar um trabalho de pesquisa. Estas competências são essenciais para auxiliar o aluno a aprender a aprender e, futuramente, para a sua integração sócio-profissional.
Mas será que todos os professores têm consciência desta tarefa, fundamental para uma formação integral e uma futura inserção profissional e social dos seus alunos?
Para responder a esta questão, poderíamos referir vários estudos e, dentre eles, auxiliámo-nos de um realizado por Maria Helena Ançã (2001), relativo ao contributo da língua portuguesa para o sucesso escolar nas outras áreas curriculares. A autora pretendia determinar que consciência tinham os estudantes, enquanto alunos do Ensino Superior e futuros professores (de Matemática) em Português, da importância da língua em que iriam ensinar. Após a análise dos dados recolhidos a partir da aplicação de um questionário a um grupo de alunos da Licenciatura em Ensino de Matemática da Universidade de Aveiro, concluiu que estes atribuíam a devida importância à língua portuguesa, enquanto língua materna, mas também enquanto língua privilegiada de ensino e de aprendizagem. Na opinião destes futuros professores, o domínio da língua portuguesa reverteria não só a favor da disciplina de Matemática, neste caso, mas também a favor da formação geral do indivíduo, do cidadão e do professor. O grupo de inquiridos sublinhou ainda que fazia parte das competências a adquirir e desenvolver, durante a frequência dos Ensinos Básico e Secundário, dominar os instrumentos operatórios para uma reflexão sobre a língua portuguesa e sobre o seu funcionamento.
A outra vertente da transversalidade da língua portuguesa (referida anteriormente) está associada ao facto de todas as áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, poderem contribuir para um melhor domínio da mesma, pois, como já foi referido, ela é o instrumento de aprendizagem em todo o currículo: é veículo de comunicação entre professores e alunos e um espaço privilegiado para o desenvolvimento das competências cognitivas, linguísticas e comunicativas dos alunos.
Devido ao seu carácter aberto – associado ao facto de nelas nada estar previamente programado, nem se prever a leccionação de conteúdos específicos no seu âmbito –, as novas áreas curriculares não disciplinares apresentam-se como um espaço ideal para promover o contacto entre as diferentes áreas curriculares disciplinares. Temas ou conteúdos de qualquer disciplina podem ser abordados no âmbito destas áreas, onde tudo pode ser relacionado, questionado e desenvolvido, evidenciando-se assim o seu carácter interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar.
Para além das áreas curriculares não disciplinares, os professores costumam referir as disciplinas de Línguas Estrangeiras e de História como as principais promotoras da transversalidade da língua portuguesa, como confirmam os resultados obtidos por Rómulo Neves (2004: 166), no seu estudo sobre as representações de supervisores de Português no 3º Ciclo do Ensino Básico relativas a diversos aspectos da transversalidade da língua portuguesa.
Este fenómeno é de fácil compreensão, uma vez que as línguas apresentam, no seu currículo, conteúdos semelhantes e pretendem desenvolver as mesmas competências.
É evidente que todas as outras disciplinas (que não sejam a disciplina de Língua Portuguesa) podem e devem desenvolver a transversalidade da língua portuguesa, de acordo com a legislação em vigor.
Este princípio encontra-se definido em diversos documentos oficiais e essa é também a concepção de muitos educadores e até encarregados de educação. Segundo Fonseca (1990:52), “há uma (...) observação, frequentemente feita por professores, pais e até pelos próprios alunos, que dá uma maior dimensão ao problema [transversalidade da Língua Materna] (...): o insucesso noutras áreas do saber ou disciplinas deve-se ou não é mais que insucesso em Língua Materna.”
No entanto, devido ao tradicionalismo do contexto educativo (que fecha cada disciplina em si mesma), à resistência dos professores em abrir as fronteiras da sua sala de aula (para a deixarem invadir por conhecimentos provenientes de outras áreas do saber), à falta de trabalho colaborativo entre professores (que proporcione a troca de experiências edificantes e que contribua para a adequação do processo de ensino/aprendizagem ao grupo/turma em questão), à falta de formação para os professores (que conduz às dificuldades de operacionalização), a transversalidade da língua portuguesa encontra obstáculos, quando se trata de ser desenvolvida pelas restantes áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares).
Em suma, todos os professores reconhecem realmente a sua importância, mas sentem grande dificuldade em concretizar a sua operacionalização.

3. O Projecto da Gestão Flexível do Currículo e a operacionalização da transversalidade da língua portuguesa
Como refere Ana Maria Lopes (2003), o Conselho Europeu, reunido em Lisboa em Março de 2000, instituiu a modernização do sistema educativo como um dos objectivos da década em curso, de modo a que seja possível acompanhar as mudanças sócio-económicas que se verificam em toda a Europa. Das conclusões desta reunião, é oportuno destacar a que refere a necessidade de adaptar os sistemas educativos na Europa às exigências da sociedade, nomeadamente concedendo oportunidades de aprendizagem a diversos grupos sociais. Contribuir para a formação de cidadãos responsáveis e intervenientes é o grande desafio com que o sistema educativo se confronta hoje em dia.
Espera-se que as mudanças que têm actualmente lugar em Portugal, nomeadamente a Reorganização Curricular do Ensino Básico, consignada no Decreto-Lei nº 6/2001 e inspirada nos mesmos princípios que regem o Projecto da Gestão Flexível do Currículo, constituam um passo em frente na concretização desse objectivo. Este projecto assenta no pressuposto de que cada escola – e, mais especificamente, os professores de cada escola – dispõe de autonomia para gerir o processo de ensino/aprendizagem. Pretende-se assim, e tanto quanto possível, atender à realidade e necessidades de cada grupo de alunos, de cada escola e de cada região.
Tem-se consciência de que se pretende uma escolaridade “para todos”, mas, complementarmente, que nem todos têm condições para obter o tão desejado sucesso. Assim sendo, deve-se dar particular atenção às situações de exclusão e tentar integrar no sistema educativo, da melhor forma, o maior número possível de indivíduos, fornecendo-lhes formação e educação. No entanto, reconhece-se que continuarão sempre a existir situações que é impossível controlar.
A partir das orientações curriculares em vigor no âmbito da Gestão Flexível do Currículo e do núcleo de aprendizagens consideradas essenciais a todos os alunos do mesmo ciclo, as escolas e os próprios professores têm oportunidade de determinar as competências cujo desenvolvimento irão privilegiar, seleccionar conteúdos a elas associados e determinar as actividades a implementar nas diferentes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, a fim de que elas sejam efectivamente desenvolvidas. Paralelamente, poderão também organizar o processo de ensino/aprendizagem, em termos de tempo e de métodos, tendo em conta os contextos escolares e a comunidade educativa em causa.
Esta adequação é trabalhada em Conselho de Turma através da elaboração do Projecto Curricular de Turma, uma das inovações desta Reorganização Curricular do Ensino Básico, que serve de base à operacionalização do Projecto da Gestão Flexível do Currículo. De facto, é através dele que se chega aos alunos de uma dada turma, organizando-se e planificando-se o processo de ensino/aprendizagem em função das suas necessidades e interesses específicos. A operacionalização eficaz deste projecto pressupõe o trabalho colaborativo entre professores, principalmente no seio do Conselho de Turma.
A elaboração, implementação e avaliação do Projecto Curricular de Turma contribuem, de forma inestimável, para a operacionalização da transversalidade da língua portuguesa. No Decreto-Lei nº 6/2001, que regulamenta a Reorganização Curricular do Ensino Básico, refere-se que “nesta reorganização assume particular relevo [...] o reforço do núcleo central do currículo nos domínios da língua materna e da matemática” e que “o diploma consagra [...] o domínio da língua portuguesa [...] como formações transdisciplinares”. O artigo 6º do mesmo diploma volta a referir a valorização da língua portuguesa como formação transdisciplinar.
Assim, pretendemos, com o nosso estudo, proceder à análise de Projectos Curriculares de Turma, tendo em conta dois aspectos essenciais: i) a presença da transversalidade da língua portuguesa nesses documentos e ii) propostas relativas à sua operacionalização nas diversas áreas curriculares (disciplinares e não disciplinares).

4. O estudo empírico
No âmbito do nosso estudo, analisámos os Projectos Curriculares de Turma de todas as turmas do 7º Ano de Escolaridade de duas escolas e procedemos à comparação das observações relativas às duas instituições.
A técnica privilegiada de recolha de dados foi a análise documental, que assentou em duas grelhas construídas para o efeito: uma relativa ao contributo da Língua Portuguesa para o sucesso escolar nas outras áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, e outra relativa ao contributo das restantes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, para o domínio da Língua Portuguesa. Ambas as grelhas se centravam no desenvolvimento de competências associadas à compreensão na leitura.
De acordo com Bardin (1995), a análise documental pode ser definida como uma operação ou conjunto de operações cujo objectivo principal é o tratamento da informação contida em diferentes documentos acumulados para posterior consulta e utilização.
Indo ao encontro das indicações de Pardal e Correia (1995), não dispensámos certas formas de actuação: definição clara do objecto de estudo, adequada formulação de hipótese(s), comparação limitada àquilo que é comparável, apuramento do nível de imparcialidade das fontes.
Para responder a algumas dúvidas que surgiram aquando a análise documental, recorremos a outro método de recolha de dados – a entrevista. Foram entrevistados alguns Directores de Turma responsáveis pela elaboração de Projectos Curriculares de Turma (os que se disponibilizaram para o efeito), também com o objectivo de determinar os princípios pedagógico-didácticos que tinham estado na base dos documentos produzidos, procurando esclarecer pontos menos claros. As entrevistas realizadas foram do tipo semi-estruturado, isto é, feitas com base num guião orientador, que foi utilizado de uma forma flexível. Este estava organizado em três grandes blocos temáticos, que exploravam aspectos importantes para o nosso estudo: i) a caracterização do Director de Turma, ii) o papel do Conselho de Turma na elaboração do Projecto Curricular de Turma e iii) a relação entre o Projecto Curricular de Turma e a transversalidade da língua portuguesa.
Ao confrontar os Directores de Turma entrevistados com os documentos produzidos sob a sua orientação, pretendia-se reconstruir o sentido que eles davam ao conceito de transversalidade e às práticas pedagógicas que deveriam conduzir à operacionalização da transversalidade, particularmente associada à compreensão na leitura. Pretendia-se também levá-los a reflectir acerca das metodologias utilizadas para a construção do Projecto Curricular de Turma e sobre a adequação da ideologia subjacente ao mesmo.

5. Algumas conclusões do estudo
5.1. Decorrentes da análise dos Projectos Curriculares de Turma
Uma primeira conclusão evidente é a ausência de formação no âmbito do Projecto da Gestão Flexível do Currículo (Sá, 2006).
A falta de coordenação entre áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, e as dificuldades de operacionalização da transversalidade da língua portuguesa a ela associada podem ser vistas como consequências dessa falta de formação.
Estes dois factores encontram-se interligados e esse facto torna-se evidente, quando verificamos as disparidades existentes entre os planos relativos a estes dois tipos de áreas curriculares.
Os planos das áreas curriculares não disciplinares estão elaborados de acordo com objectivos a atingir, que não encontram correspondência nas competências a desenvolver pelas áreas curriculares disciplinares indicadas nos respectivos planos, o que prova a falta de articulação entre áreas curriculares. Mas as áreas curriculares não disciplinares definem estratégias/actividades que se destinam a atingir os objectivos delineados, onde é notória a operacionalização do desenvolvimento de competências transversais associadas ao domínio da língua portuguesa. Por seu lado, as áreas curriculares disciplinares não fazem qualquer referência a objectivos, mencionando somente as competências específicas sem indicar qualquer estratégia que as desenvolva, que pouco promovem a transversalidade da língua portuguesa. Constituem excepção as Línguas Estrangeiras, a História e a Geografia.
Esta constatação explica-se pelo facto dos programas propostos pelo Ministério da Educação para as áreas curriculares disciplinares de línguas se apresentarem já organizados de forma a promoverem a transversalidade da língua portuguesa. O facto de nestas áreas curriculares disciplinares serem exploradas praticamente as mesmas competências linguísticas decorre da proximidade existente entre elas, dado que todas pretendem promover o ensino/aprendizagem de uma língua.
A disciplina de História – pertencente, no sistema antigo, à área das Humanidades, juntamente com as línguas – apresenta também afinidades com a disciplina de Língua Portuguesa e o seu carácter documental e investigativo promove o desenvolvimento de competências associadas à compreensão na leitura.
Por outro lado, a disciplina de Geografia, apesar de ser uma ciência social, tem consciência da importância da transversalidade da língua portuguesa e tenta operacionalizá-la, constituindo uma excepção dentro das restantes áreas curriculares disciplinares, revelando que os docentes desta disciplina consideram a língua portuguesa como um instrumento essencial para que os alunos desenvolvam as competências da disciplina.
No entanto, as restantes áreas curriculares disciplinares não promovem, nas suas competências específicas, a transversalidade da língua portuguesa.
São várias as causas que estão na origem desta situação, destacando-se a persistência do Ministério da Educação em implementar reformas sem proporcionar aos docentes a formação necessária para as operacionalizar e a tendência dos professores para não questionarem as directrizes do Ministério da Educação, aplicando-as sem uma reflexão necessária a uma correcta aplicação, que favoreça os alunos no processo de ensino/aprendizagem.
A ausência de referências a objectivos e a menção de competências sem indicação de como vão ser operacionalizadas, referindo as estratégias/actividades previstas para o efeito, resultam do facto dos professores não terem ainda interiorizado o conceito de competência, à luz do novo paradigma crítico-reflexivo em se enquadra a Reorganização Curricular do Ensino Básico. Como consequência da indefinição que rodeia o conceito de competência, surge a identificação deste conceito com o de objectivo, confundindo-se o significado dos dois conceitos.
Esta última observação conduz-nos a uma outra conclusão retirada do nosso estudo: a ausência de reflexão por parte dos docentes.
Segundo Maria do Céu Roldão (2000: 17), “pensar curricularmente significa tão só assumir conscientemente uma postura reflexiva e analítica face ao que constitui a sua prática quotidiana, concebendo-a como campo de saber próprio a desenvolver e aprofundar não como normativo que apenas se executa sem agir sobre ele.”
Essa consciência só é conseguida através de uma profunda reflexão acerca das práticas lectivas, permitindo operacionalizar os conceitos de adequação e flexibilidade, exigidos pelo paradigma crítico-reflexivo e que são a expressão de toda a ideologia que está na base do Projecto da Gestão Flexível do Currículo.
5.2. Decorrentes da análise dos dados recolhidos a partir das entrevistas aos Directores de Turma
Se a análise dos Projectos Curriculares de Turma revelou dificuldades de operacionalização relacionadas com a transversalidade da língua portuguesa, estas tornaram-se ainda mais evidentes quando se procedeu à análise das respostas dadas pelos Directores de Turma entrevistados. Todos sublinhavam a importância da transversalidade da língua portuguesa, mas, no momento de explicitar como procediam à sua operacionalização, surgiam dificuldades. Os exemplos dados revelavam a falta de uma reflexão rigorosa e profunda acerca dos benefícios da transversalidade da língua portuguesa, sendo as sugestões bastante vagas: leitura silenciosa e expressiva de textos, leitura de textos e notícias actuais e exploração das obras de leitura obrigatória.
A análise das respostas dos Directores de Turma entrevistados confirmou uma outra observação feita a partir da análise dos Projectos Curriculares de Turma, levando-nos a tomar consciência da ausência de trabalho colaborativo nas nossas escolas. No que se refere à análise dos Projectos Curriculares de Turma, tal facto é comprovado, por exemplo, pela falta de articulação entre áreas curriculares disciplinares e não disciplinares e também entre competências e conteúdos indicados para as diferentes áreas curriculares disciplinares. A partir da análise das respostas às entrevistas, apercebemo-nos da escassez de reuniões do Conselho de Turma especificamente consagradas à elaboração do Projecto Curricular de Turma, do não exercício da função de supervisor por parte do Director de Turma, da atribuição exclusiva do desenvolvimento curricular nas áreas curriculares não disciplinares ao professor responsável pela sua leccionação (numa das escolas), tudo factores que levam a pressupor uma ausência de trabalho colaborativo entre os professores envolvidos neste processo.
Os professores não trabalham em conjunto, porque tal exige mais tempo de dedicação à escola, porque não querem partilhar saberes (pois receiam a avaliação implícita em tal situação) e ainda porque não admitem hierarquias (indispensáveis a uma boa orientação dos trabalhos).
Assim, a partir das entrevistas aos Directores de Turma, reforçámos a ideia de que a formação, a reflexão e o trabalho colaborativo são imprescindíveis para o sucesso de qualquer reforma, principalmente de uma reforma que implica mudança de mentalidades, como é o caso da Reorganização Curricular do Ensino Básico.

6. Algumas sugestões decorrentes do estudo
As sugestões apresentadas no âmbito deste estudo têm como objectivo contribuir para a elaboração de Projectos Curriculares de Turma que reflictam formas de operacionalização da transversalidade da língua portuguesa, nomeadamente associada ao desenvolvimento de competências em compreensão na leitura.
Foi referido, por várias vezes, que, para tornar possível esta transversalidade, é necessário que exista uma contiguidade entre a Língua Portuguesa e as demais áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares, contiguidade essa que se deve manifestar tanto ao nível da planificação, como ao nível da execução, para, assim, ser possível desenvolver competências transversais.
Esta contiguidade implica que a construção do currículo seja encarada como “um processo gradual e contínuo, envolvendo observação, reflexão e ajustamentos” (Aido, 2001:36), o que requer trabalho colaborativo por parte dos professores, pois dele depende a verdadeira cultura interdisciplinar.
Assim, deveria constar do horário dos professores um espaço especificamente destinado a este trabalho colaborativo. Entre outras finalidades, esse espaço seria consagrado à concepção, elaboração, avaliação e reformulação do Projecto Curricular da turma em questão, trabalho esse que favoreceria a articulação entre as diversas áreas do currículo, particularmente em termos de abordagem da transversalidade da língua portuguesa e da sua operacionalização.
As áreas curriculares não disciplinares deveriam explorar temas aglutinadores e as actividades/estratégias aí desenvolvidas deveriam ser planificadas de acordo com os objectivos de diversas áreas curriculares disciplinares, articulando os conteúdos e promovendo o desenvolvimento de competências transversais.
O Ministério da Educação deveria também promover a transversalidade da língua portuguesa de uma forma mais activa, pois é necessário, não só legislar, mas também mudar mentalidades.
As acções de formação poderiam não fazer parte do horário dos professores, mas deveriam ser creditadas, contribuindo para a progressão na carreira do docente, motivando, desta forma, para a sua frequência.
Deveriam também contribuir para que todos os professores tomassem consciência da importância do desenvolvimento de competências associadas ao domínio da língua portuguesa – quer no âmbito da área curricular do mesmo nome, quer no âmbito das restantes áreas curriculares disciplinares. Paralelamente, todos os professores deveriam ser alertados para o papel a desempenhar pelas novas áreas curriculares não disciplinares neste contexto.
Pensamos que, para que estas áreas curriculares não disciplinares atinjam os objectivos para cuja concretização foram propostas, seria benéfico que a sua dinamização fosse assegurada por, pelo menos, dois docentes de áreas diferentes. Assim, seria combatida a tendência para trabalhar conteúdos directamente relacionados com a disciplina do docente responsável pela sua leccionação, não alimentando a ideia do “saber estanque”.
Além disso, os docentes responsáveis por estas áreas deveriam ter como função a sua coordenação efectiva, aproveitando as reuniões do Conselho de Turma para pedir sugestões a todos os docentes, visando o desenvolvimento curricular destas áreas e promovendo, dessa forma, o trabalho colaborativo.
Os órgãos de gestão da escola deveriam também proporcionar as condições logísticas necessárias a este processo – por exemplo, através da criação de espaços de diálogo e reflexão participada –, pois só assim se poderá proceder à operacionalização de todo este processo.
Os Directores de Turma deveriam desenvolver uma concepção supervisiva das suas funções, mediante uma formação adequada ao seu exercício.
Relativamente à elaboração dos Projectos Curriculares de Turma, com vista à promoção da transversalidade da língua portuguesa (principalmente na área curricular disciplinar do mesmo nome), essa questão deveria ser primeiro debatida em Departamento, para depois as diferentes áreas curriculares disciplinares poderem articular-se entre si em Conselho de Turma, tendo os diversos professores já trabalhado nesse campo, facilitando a sua operacionalização.
Relativamente às áreas curriculares não disciplinares, a respectiva equipa coordenadora deveria também programá-las no sentido de promover a referida transversalidade, para, depois, ser operacionalizada, contando com a colaboração do Conselho de Turma.
Para uma execução funcional do Projecto Curricular de Turma, seria recomendável que o Conselho de Turma se reunisse mais frequentemente, com o objectivo de o avaliar e de o reformular, adequando-o constantemente à turma em questão.
Para fazer a avaliação do Projecto Curricular de Turma, seria também muito importante a opinião dos alunos. Eles deveriam ser frequentemente auscultados acerca do seu processo de aprendizagem, sendo-lhes permitido fornecer sugestões que contribuíssem para uma melhor adequação do Projecto Curricular de Turma às suas necessidades.
Por fim, para que os diversos órgãos escolares actuassem no sentido de promover a transversalidade da língua portuguesa, o Departamento de Língua Portuguesa deveria desempenhar um papel mais preponderante no meio escolar, promovendo actividades que apelassem à acção dos outros professores nesse sentido, incluindo mesmo acções de formação.

BIBLIOGRAFIA
Obras consultadas
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Legislação consultada
Lei 46/86, de 14 de Outubro – Lei de Bases do Sistema Educativo.
Decreto-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto – Estrutura Curricular.
Despacho nº 9590/99, de 14 de Maio – Projecto de Gestão Flexível do Currículo.
Decreto-Lei nº 6/2001, de 18 de Janeiro – Reorganização Curricular do Ensino Básico.