terça-feira, 2 de outubro de 2012

Parecer sobre as metas curriculares do Português

PARECER O documento relativo às metas propostas para o ensino/aprendizagem da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, nos três ciclos do Ensino Básico, posto a discussão pelo Ministério da Educação, merece, antes de mais, uma cuidadosa apreciação crítica. Em termos gerais, notam-se algumas marcas de retrocesso: - abandonou-se a lógica do ciclo de estudos para se passar à do ano de escolaridade (seguindo o modelo estabelecido pelos programas de 2009); percebe-se a necessidade de haver responsabilização, mas esta também poderia funcionar a nível do ciclo, se a carreira docente fosse mais estável; - esta lógica está também associada a um conceito de progressão (por ano de escolaridade), que parece difícil de fundamentar (tanto mais que, na segunda parte do documento, em que são apresentadas as metas propostas, se comprova que há numerosas repetições de ano para ano); - passou-se de um ensino centrado nas competências (consagradas a nível internacional, nomeadamente na esfera europeia) à ênfase posta nos conteúdos (que interessa listar ao ínfimo pormenor); - persiste a crença de que uma boa educação literária resolverá muitos dos problemas relacionados com o domínio da comunicação oral e escrita; - pretende-se fundamentar essa conceção nas “melhores práticas internacionais”, mas não se concretiza, indicando as fontes onde foram encontradas; do mesmo modo, associa-se a educação literária ao exercício de formas de cidadania superiores, mas nunca se explicita em que consistem; - a sua operacionalização, como sempre, é associada a uma lista de obras e autores a estudar; - vê-se a exercitação/o treino como a chave para uma aprendizagem mais sólida (pressentindo-se que, subjacente a este princípio, está a ideia de que a repetição mecânica consolida o saber); - relativamente à leitura e escrita, vê-se a primeira como promotora da absorção de processos e estilos que facilitam a composição, elemento da segunda (p. 6), conceção muito “clássica”, que tem vindo a ser criticada, a nível nacional e internacional; - adota-se o termo Gramática (em substituição do Funcionamento da Língua, designação adotada em numerosos documentos oficiais, e do Conhecimento explícito da língua, designação fortemente reivindicada nos guiões de operacionalização dos programas elaborados pela equipa de Carlos Reis), sem uma justificação válida; diz-se apenas que as outras designações podem causar confusão; - o ensino e sua avaliação são centrados em “descritores de desempenho”, que parecem essencialmente válidos para o contexto escolar; - paralelamente fica-se com a sensação de que estas metas equivalem à lista de conteúdos dos programas da equipa de Carlos Reis (2009), que só apresentam algumas sugestões. A análise das metas propostas para os diferentes anos de escolaridade dos três ciclos do ensino básico também revela alguns problemas: - A nível da oralidade (Ouvir e Falar) • Associa-se o ensino do vocabulário à quantificação das palavras a aprender, em função de domínios de conteúdo estipulados arbitrariamente (dado que não são referidos critérios tidos em conta para a sua seleção), mas vistos como devidamente associados aos interesses dos alunos; • Curiosamente, no 1º Ciclo do Ensino Básico, o ensino/aprendizagem do vocabulário não é associado à comunicação escrita; • A construção de inferências é apenas referida no 3º ano, enquanto, para a comunicação escrita, surge logo no 1º ano. - A nível da comunicação escrita (Ler e Escrever) • Recomenda-se um ensino prescritivo, baseado num caderno de apoio, que o próprio Ministério publicará (p. 9); • Aposta-se em objetivos definidos em termos clássicos, o que nem sempre era verificável; • Insiste-se muito na vertente da decifração, embora paralelamente sejam propostas atividades mais centradas na compreensão leitora; • Curiosamente, só no 2º ciclo é que se começam a trabalhar certas estratégias de compreensão na leitura (por exemplo, fazer previsões); • Há uma grande indeterminação nas referências feitas aos tipos/géneros de textos; • À medida que vão sendo referidos textos variados (pressupondo uma progressão nas competências de expressão e produção escrita), constata-se a dificuldade em imaginar que critérios terão estado na base da seleção desses tipos/géneros textuais; • Faz-se constante referência a tipos/géneros textuais, sem que estes sejam trabalhados em termos de estrutura; • São focados aspetos específicos de certos tipos/géneros textuais (por exemplo, a reflexão sobre sentimentos e emoções das personagens) em indicações relativas a aspetos válidos para qualquer tipo de texto; • A banda desenhada tem um estatuto indeterminado (algures entre o tipo e o género de texto) e parece ser vista como fácil (já que a sua leitura é recomendada a partir do 1º ano de escolaridade); • É de salientar que alguns aspetos contemplados na leitura serão de extrema importância para a escrita (por exemplo, continuidade, progressão temática, coerência e coesão, conectores e referentes) (cf., por exemplo, p. 55), mas tal não é explicitamente referido no documento; • É interessante constatar, no 3º ciclo, a referência explícita à preparação da leitura em voz alta, que não se verifica nas metas relativas a outros ciclos (cf., por exemplo, p. 55); • Persiste a insistência em levar os alunos a escrever textos que já quase não existem (postais e cartas, por exemplo); • A primeira referência clara à necessidade de estruturar o texto escrito a produzir de acordo com o tipo/género textual a que pertence surge apenas nas metas relativas ao 3º ciclo, associada à coerência textual (p. 57); • Insiste-se muito pouco na revisão, reescrita e melhoria de textos, associando a análise crítica de textos exclusivamente aos que foram lidos e a aspetos que têm a ver com a emissão de opiniões sobre o seu tema e assunto (cf., por exemplo, p. 48); • A revisão prevista é feita apenas pelo próprio aluno (o melhor que pode), não implicando a intervenção do professor ou de outros alunos (cf., por exemplo, p. 49); • No 9º ano, introduz-se a referência à variação linguística do Português (p. 70), curiosamente ausente da oralidade; • O ensino/aprendizagem da ortografia surge ligado ao ditado tradicional (p. 11); • Recomenda-se o recurso à cópia de textos (que será necessário contextualizar). - A nível da Educação literária • Esta é associada a aprendizagens ligadas ao desenvolvimento da compreensão na leitura que também poderiam ser feitas a partir de textos não literários (cf., por exemplo, p. 12); • A estrutura do texto só é referida nas metas para o 2º ciclo, quando se propõe o estudo de textos literários, e está associada aos géneros literários clássicos (narrativo, lírico e dramático); • Há flutuações incompreensíveis na descrição da estrutura de certos tipos/géneros textuais; por exemplo, a estrutura da narrativa é primeiramente descrita como Introdução/Desenvolvimento/Conclusão, de seguida como Situação inicial/Desenvolvimento/Situação final e, mais abaixo (quando se trata de escrever textos narrativos), já aparece uma estrutura mais complexa (p. 35); • Há mecanismos linguísticos como a conotação, que continuam a ser exclusivamente associados ao texto literário; • No 7º ano, dá-se início à redação de dissertações (p. 58); • No 8º ano, valoriza-se muito o texto dramático e, no 9º ano, o texto narrativo, sem que se compreenda por que razão tal acontece; • A contextualização das obras só é introduzida neste último ano. - A nível da gramática • É dito que o seu estudo deve ser associado à comunicação oral e escrita, embora tal conceção não transpareça do que é referido nas diversas secções consagradas a este tópico; • Desde o 1º ciclo, são apresentadas grandes listas de conteúdos (tal como nos programas de 1991). No que se refere à lista de obras indicadas para leitura e/ou exploração nos vários anos de escolaridade dos três ciclos do ensino básico, constata-se que: - Há algumas inovações que parecem bastante positivas • A introdução de uma obra dramática na lista relativa ao 4º ano (p. 78); • A referência a adaptações de clássicos da literatura juvenil para o 7º ano (Robinson Crusoë ou A ilha do tesouro) (p. 82); • A indicação do romance de aventuras para o 8º ano (uma obra da série Sandokan, de Salgari) (p. 85); - Assume-se posições muito conservadoras noutros pontos da lista • Estudo de textos do teatro medieval (uma cena de um auto de Gil Vicente), já no 7º ano (p. 82); • Estudo de poetas estrangeiros do séc. XVI (Petrarca e Shakespeare), no 8º ano (p. 86); • No 9º ano, há uma grande concentração na literatura, o que parece um retorno a conceções que os programas anteriores puseram em causa (pp. 87 e 88). Tendo em conta esta análise (que pretendemos que fosse tão detalhada quanto possível), somos do parecer de que: - não há razões para recusar liminarmente as metas propostas; - alguns aspetos das mesmas mereciam ser revistos pela equipa responsável pela sua elaboração, tendo em conta os pareceres recolhidos durante esta fase de discussão do documento; - será importante associar estas propostas a documentos mais abrangentes, que permitam a todos os envolvidos no sistema educativo compreender aonde nos leva o caminho que vamos trilhar no âmbito do ensino/aprendizagem da língua portuguesa no Ensino Básico; - o manual referido neste documento relativo às metas poderá ser um desses documentos, mas não deverá, de modo nenhum ser o único. Aveiro, 18 de julho de 2012

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